Os dois problemas da imigração

CATÓLICA-LISBON
Sexta, Agosto 1, 2025 - 09:45

Portugal é uma nação de migrantes; de emigrantes e de imigrantes. Situado no fim da terra, sempre fomos um país de migrantes. Todos sabemos dos gigantescos movimentos históricos de população, dos bárbaros aos Descobrimentos, até aos “brasileiros” do século XIX e à “mala de cartão” da segunda metade de novecentos. O fenómeno, porém, não é apenas uma lembrança remota. Desde o ano 2000 já saíram de Portugal 640 mil pessoas e entrou quase milhão e meio. Continuamos a ser uma nação de migrantes, como sempre.

Assim, pode dizer-se que ninguém como nós conhece os dramas da mobilidade. Isso significa que os portugueses sabem, ou deviam saber, algo que parece escapar à esmagadora maioria do planeta: o imigrante é uma pessoa; tem sentimentos e preocupações, tem sonhos e projetos, tem família e amigos. É por amor dos seus que faz a viagem, cara e perigosa, e suporta condições de vida miseráveis. Deste modo, os portugueses deviam estremecer de indignação ao verem outros países a tratar o estrangeiro como gado ou, pior, como vírus.

Neste mundo globalizado e, em especial, no Ocidente que se considera civilizado, existe uma curiosa cegueira relativamente ao estrangeiro, em especial se vem de fora do Ocidente: a ele não se aplicam as regras normais de comportamento. Por exemplo, pode-se fazer-lhe aquilo que não quereríamos que nos fizessem a nós. Claro que, para justificar isso, é preciso colar-lhe um adjetivo, por exemplo “ilegal”. Passando a ser um “imigrante ilegal”, já é possível violar as regras básicas da decência.

O que nunca se diz é que a tal lei não tem nada ver com delitos, ou sequer insubordinações. Foi feita de propósito para tornar ilícito o dito imigrante e assim adormecer a consciência pública. Asseguramos deste modo que não temos nada contra estrangeiros, só contra os ilegais, que são exatamente iguais aos outros. Quem comete um crime, seja nacional ou forasteiro, deve ser castigado. Mas aqui a lei é feita, não contra o mal, mas especificamente contra a pessoa, o quer que ela faça; só respirar passa a ser contravenção. Se a mesma lei fosse aplicada aos nacionais, quantos não seriam ilegais?

Estas ignomínias não acontecem por acaso. Elas resultam dos problemas causados pela imigração; os mesmos problemas que esses países têm com imigrantes portugueses. Esses problemas nada têm a ver com maldade, vadiagem ou parasitismo. Pelo contrário, em geral os imigrantes trabalham duro, calam os vexames e penúrias para se ocuparem das tarefas que os locais não querem fazer. Os verdadeiros problemas da imigração são dois.

O primeiro vem dos mercadores do medo. Trata-se de políticos que, não tendo soluções para propor, esquecem os programas, preferindo jogar com os receios da população. Esses temores vêm, em geral dos ricos, dos corruptos, dos revolucionários e dos estrangeiros. Canalizando e concentrando as raivas da opinião pública, conseguem notoriedade e por vezes até influência. Em épocas de mutação social surgem sempre esses parasitas, como mosquitos no verão.

O segundo problema vem dos moderados cobardes que, assustados pela subida desses populistas, esquecem os valores e apoiam a infâmia. Julgam com isso recapturar os votos que as campanhas de medo lhe tiraram. Sem percebem que, confirmando a fraude demagógica, dão mais força aos radicais. O eleitor cliente da discriminação costuma preferir o produto genuíno às falsificações oportunistas.

Se coisas destas deveriam fazer estremecer de indignação uma nação de migrantes, que dizer quando as vemos na nação de migrantes? A memória é curta, e o tal milhão e meio fez aparecer por cá os mesmos problemas. O mais espantoso é que aqueles que copiam o que se passa lá fora não se lembram dos seus tios, primos, pais e avós que, quando eram imigrantes, também tiveram de passar por essas indignidades. E isto num país que se diz civilizado, democrata, até cristão. Os que o fazem seguem realmente o Evangelho, mas na parte dos fariseus e doutores da lei.

Pior ainda, em Portugal, o tal país que devia saber o que isso custa mais que todos os outros, esta cegueira traz consigo requintes de malvadez, provenientes da também habitual trapalhice nacional. O nosso amor à burocracia faz com que, para não ser ilegal, o imigrante tenha de passar noites ao relento em filas intermináveis para conseguir um carimbo salvador. Ou melhor, que costumava salvar, porque a meio da fila as regras podem mudar, e afinal será precisa outra certidão. Isto quando o imigrante não é morto à pancada pelo fiscal ou escravizado pelo empresário agrícola, ambos familiares de antigos emigrantes.

O tratamento dos estrangeiros vai ficar como uma das manchas mais graves na moral desta geração. Mas se isso é verdade na Europa e na América, atinge foros de devassidão quando acontece numa nação de migrantes.

João César das Neves, Professor na CATÓLICA-LISBON