Professor Ilídio Barreto: Confiança e dinâmica entre executivos, descodificando a origem de ideias de alta qualidade em choques sem precedentes

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Quarta, Dezembro 13, 2023 - 12:30

Num mundo em constante evolução e marcado por choques sem precedentes, a humanidade tem sido empurrada para territórios desconhecidos, enfrentando desafios que antes eram inimagináveis. O advento da Internet revolucionou a forma como comunicamos, trabalhamos e acedemos à informação, dando início a uma era de transformação digital. A pandemia de COVID-19, uma crise de saúde global imprevista, perturbou todas as facetas das nossas vidas, expondo vulnerabilidades nos cuidados de saúde, na economia e nas cadeias de abastecimento globais. Estes casos são apenas alguns dos muitos choques externos ou "exógenos" que revelaram a necessidade das empresas encontrarem soluções inovadoras para problemas que nunca aconteceram antes. Quando confrontadas com choques sem precedentes, a capacidade de uma empresa para originar (“originate”, de acordo com o artigo) respostas eficazes torna-se primordial. No meio destas incertezas, algumas empresas destacam-se por apresentarem ideias de alta qualidade, ou seja, ideias que são não só altamente inovadoras, mas também excecionalmente relevantes.

Ilídio Barreto, Professor da CATÓLICA-LISBON, incluído na lista World's Top Scientists, compilada pela Universidade de Stanford (2021 e 2023), acaba de publicar na revista científica Academy of Management Review (a publicação científica de topo na área da teoria da Gestão) uma teoria inovadora que explica como e porque é que os executivos originam (ou não) ideias de alta qualidade para as respostas das suas empresas a eventos importantes, exógenos e sem precedentes. A teoria aproveita os recentes desenvolvimentos nos domínios da criatividade, da psicologia e da neurociência e centra-se em três níveis de análise: o individual, o diádico (grupos de duas pessoas) e o nível da equipa.

Ilídio Barreto

“Dois fatores-chave levaram-me a desenvolver esta teoria. Em primeiro lugar, à medida que criava inúmeros estudos de caso para programas executivos, aprofundando questões estratégicas globais, apercebi-me de que as empresas de topo enfrentam frequentemente desafios para responder adequadamente a grandes choques, especialmente quando estes não têm precedentes. Em segundo lugar, em algumas das minhas aulas, utilizo uma simulação de criação de valor e observei equipas de executivos a debaterem-se com decisões estratégicas em cenários difíceis.  Verifiquei que a dinâmica de interação dentro destes grupos variava significativamente, com certos modos de interação a revelarem-se mais conducentes a uma tomada de decisões de elevada qualidade do que outros.” - Ilídio Barreto.

Em contextos sem precedentes, os membros das equipas de gestão de topo são especialmente importantes porque, entre as suas tarefas extremamente complexas, monitorizam e interpretam eventos e tendências externas e são responsáveis pela formulação de respostas estratégicas adaptativas ao ambiente que influenciam o futuro das suas empresas. Até ao momento presente, não existia uma teoria completa sobre este tema, e no artigo intitulado “Navigating uncharted waters: How executives originate high-quality ideas for strategic responses to unprecedented shocks”, o Professor Barreto oferece uma primeira e revolucionária resposta. No domínio dos processos cognitivos, discernimos dois modos primários de pensamento (ou seja, de processamento de informação no nosso cérebro). O primeiro é o processamento automático, que é uma compreensão espontânea e sem esforço da situação e das suas implicações, com base nos nossos esquemas mentais (“schemas”), ou seja, as estruturas de conhecimento armazenadas na nossa memória e moldadas ao longo do tempo pela nossa educação, experiências de vida e influências diversas. O segundo modo é o processamento controlado, caracterizado por uma análise mais lenta e pormenorizada da informação nova que nos chega. Este segundo modo requer um envolvimento ativo com novas informações, analisando-as em profundidade e considerando várias perspetivas antes de chegar a uma conclusão. Em situações quotidianas, as pessoas tendem a utilizar o processamento automático: na maioria dos casos, é suficiente para tomar decisões rápidas e navegar eficazmente no seu ambiente.  No entanto, algumas situações requerem uma reflexão meticulosa, um pensamento crítico, especialmente no meio de informações complexas, ambíguas e desconhecidas - ou seja, requerem um processamento controlado.

É o caso de choques sem precedentes, em que os indivíduos têm de interpretar novas informações e construir um novo esquema mental (“schema”), para compreender a situação e tomar decisões que sejam adequadas a essas circunstâncias específicas. Embora o processamento controlado possa levar a uma compreensão mais precisa e matizada de tais estímulos, é um modo de processamento mais lento, e exige um maior esforço cognitivo e por isso nem sempre é ativado quando deveria ser.

A confiança como fator de influência na criação de ideias de alta qualidade

A teoria propõe que o nível de confiança que um indivíduo tem em relação à sua interpretação automática da situação, ou seja, a sua confiança representacional (“representational confidence”), desempenha um papel fundamental na determinação da transição do processamento automático para o processamento controlado. Quando o nível de confiança representacional é elevado, os indivíduos, incluindo os executivos, baseiam-se frequentemente nos esquemas pré-existentes nas suas mentes e agem em conformidade. Um executivo com um elevado nível de confiança representacional utilizará um processamento automático e aplicará esquemas ligados a situações passadas que podem já não ser relevantes, particularmente quando confrontado com acontecimentos sem precedentes. Contrariamente, em situações de choque sem precedentes, um executivo com um nível moderado ou baixo de confiança representacional tenderá a utilizar um processamento controlado e a adotar uma avaliação mais crítica e analítica da situação, facilitando a construção de novos esquemas adaptados às circunstâncias únicas, que podem então conduzir a uma tomada de decisões mais informada e à criação de ideias de elevada qualidade.

"Consideremos, por exemplo, as decisões estratégicas de Mark Zuckerberg no ano passado, publicados num post, abordando questões fundamentais relativas ao Facebook e ao Instagram. O aumento imprevisto da procura de serviços durante a era da COVID-19 levou as grandes empresas tecnológicas, incluindo a Meta, a utilizar o seu esquema mental de resposta padrão para esse tipo de perturbação - expandindo a sua capacidade de produção através da contratação de milhares de pessoas. No entanto, um ano mais tarde, apercebeu-se de que não se tratava de uma perturbação típica do negócio, mas de uma situação totalmente sem precedentes com um aumento temporário, e não permanente, da procura. Em linha com as tendências da indústria, incluindo as ideias do próprio Zuckerberg, as grandes empresas de tecnologia, incluindo a Meta, foram obrigadas posteriormente a fazer uma correção de rumo significativa, resultando no subsequente despedimento de milhares de funcionários."

O nível de confiança representacional que um executivo deve ter para criar ideias de alta qualidade para eventos sem precedentes também é importante ao nível da equipa. Os executivos também podem construir novos esquemas (ou não) com base na dinâmica específica entre eles e os seus pares na tomada de decisões. 

"Apercebi-me de que as interações entre pares de executivos, as "díades", eram muito importantes para a criação de novos esquemas e, dependendo da natureza dessas interações, surgiam resultados distintos na tomada de decisões. Mesmo quando mais do que dois indivíduos (por exemplo, os indivíduos A, B e C) estão envolvidos numa determinada conversa simultânea, as suas interações diádicas podem ser diferentes: quando A diz algo, B pode ouvir e responder com atenção, enquanto C pode não ter em conta os pontos de vista de A e refutá-los rapidamente. É previsível que estas interações (diádicas) distintas contribuam de forma bastante diferente para a tarefa em questão."

A teoria postula que a interação mais produtiva ocorre quando ambos os executivos de uma díade exibem uma confiança moderada, por oposição a níveis altos ou baixos. Neste cenário, ambas as partes estão mais dispostas a ouvir e a partilhar as suas próprias perspetivas: ambos estarão dispostos a influenciar e a ser influenciados. Estas dinâmicas bidirecionais (designadas por “two-way dynamics” nesta teoria), em contraste com outros três tipos de dinâmicas identificadas no artigo, podem promover uma mudança do processamento automático para o controlado, facilitando o desenvolvimento de novos esquemas mentais e a geração de ideias de alta qualidade, particularmente em resposta a choques sem precedentes.

"Porque é que os indivíduos com elevada confiança não são os mais adequados? A minha teoria postula que os executivos com elevada confiança representacional tendem a não estar dispostos a ser influenciados; em vez disso, têm tendência para exercer influência sobre os outros sem retribuir. Estes indivíduos tendem a expressar as suas opiniões, mas  não a ouvir ativamente. Por outro lado, os executivos com pouca confiança podem estar abertos a serem influenciados e ouvintes atentos, mas tendem a não ter a assertividade necessária para influenciar os outros em troca. A história de Satya Nadella, o CEO da Microsoft, é bastante fascinante porque ele é conhecido por adotar uma abordagem equilibrada para expressar as suas opiniões e escutar as de terceiros. Antes de assumir o cargo de CEO, as interações na Microsoft eram frequentemente caracterizadas como "ouvir para refutar" em vez de "escutar para aprender". Nadella, pretendia mudar esta dinâmica, encorajando as pessoas a ouvir e a aprender umas com as outras. A nossa teoria explica que a atitude de "ouvir para refutar" pode ser o resultado de ambos os membros de uma díade terem uma confiança representacional elevada, conduzindo ao que designámos por “half-way dynamics”: ambos os membros tentam influenciar o seu parceiro, mas ninguém está disposto a ser influenciado! Além disso, a nossa teoria explica porque é que, para construir novos esquemas mentais e, consequentemente, originar ideias de alta qualidade sob choques sem precedentes, não basta escutar bem: os membros da díade também precisam de partilhar os seus próprios pensamentos e informações (algo que não é provável que aconteça quando ambos têm baixos níveis de confiança representacional)."

A interação entre poder e confiança para a criação de ideias de qualidade

Outro fator crucial que influencia o desenvolvimento de novos esquemas mentais em resposta a choques sem precedentes é o poder (“power”), ou seja, a capacidade de influenciar os outros. Quando os executivos de uma díade partilham uma confiança representacional moderada e, além disso, têm uma simetria de poder a um nível igualitário (o que significa que ambos os membros têm o mesmo poder, tal como todos os outros colegas da equipa de gestão de topo), ou se apresentam uma simetria de poder a um nível baixo (ambos os membros têm um baixo nível de poder), ambos os indivíduos da díade têm tendência para influenciar e ser influenciados. Estas dinâmicas promovem um processamento controlado, que conduzirá à criação de novos esquemas mentais e ideias de alta qualidade para responder a acontecimentos sem precedentes.

Os executivos com elevado poder apresentam frequentemente comportamentos como falar mais, interromper mais, falar fora da sua vez e dirigir os contributos dos outros, o que os torna menos dispostos a ouvir os seus pares e a compreender perspetivas alternativas. Por conseguinte, revelam uma elevada vontade de influenciar e uma baixa vontade de serem influenciados. Consequentemente, quando existe assimetria de poder numa díade (um membro tem poder elevado e o outro tem poder reduzido), o executivo com poder elevado pode estar menos aberto a ser influenciado. Do mesmo modo, quando os executivos têm uma simetria de poder a um nível elevado (ambos os membros têm um poder elevado), é provável que ambas as partes da díade apresentem uma baixa disponibilidade para serem influenciadas. Assim, em ambos os casos, não é provável que surja a dinâmica bidirecional (two-way dynamics) adequada para promover a criação de ideias de alta qualidade.

Então, o que devem fazer as equipas de gestão de topo?

No processo de tomada de decisões num contexto de choques sem precedentes, os executivos desempenham um papel crucial ao darem o exemplo. É essencial que os executivos apresentem um comportamento marcado por uma confiança moderada, em vez de adotarem uma postura de autoridade inabalável. Esta abordagem incentiva uma cultura em que os outros se sentem à vontade para exprimir as suas opiniões e ouvir os outros. Se o CEO mostrar uma atitude aberta, expressando dúvidas e vontade de ser influenciado pelos outros, isso cria um precedente poderoso para toda a equipa.

"Esta teoria tem imensas implicações práticas! Posso dar um exemplo: a criação de um grupo de trabalho (“task force”) dentro da organização para lidar com choques sem precedentes. Os CEOs são aconselhados a limitar a comunicação dos seus pontos de vista pessoais nas fases iniciais do processo de decisão. A estratégia ideal envolve a constituição de uma equipa predominantemente composta por indivíduos que, inicialmente, possuam um nível moderado de confiança representacional em relação ao choque sem precedentes. Tais executivos serão mais propensos a envolver-se em dinâmicas bidirecionais (two-way dynamics) e a construir os necessários novos esquemas mentais para o choque em causa.  Além disso, estes membros da equipa podem cultivar relações diádicas com executivos de alta e baixa confiança representacional que não pertencem ao grupo de trabalho, fomentando gradualmente um ambiente em que todos (i.e., mesmo os que não pertencem à task force) se sintam confiantes em partilhar os seus conhecimentos e opiniões. Este quadro de interações aumenta a eficácia do grupo de trabalho na abordagem à resolução da complexidade apresentada por choques sem precedentes."

Capacitar os executivos: Unir a teoria à prática

A ligação entre o conhecimento científico e o ensino de gestão enriquece a aprendizagem ao incorporar as mais recentes ideias e metodologias nos currículos académicos. No contexto de uma escola de gestão, esta transferência garante que os alunos adquirem informação relevante e atualizada, preparando-os para navegar na paisagem dinâmica do mundo empresarial. Os educadores, enquanto facilitadores, desempenham um papel crucial na tradução de conceitos científicos complexos em lições práticas de negócios, promovendo o pensamento criativo e a adaptabilidade. Esta integração dota os estudantes das competências necessárias para a tomada de decisões informadas e para o sucesso no ambiente empresarial em evolução.

"O meu princípio orientador sempre foi o de que a investigação deve centrar-se em tópicos e modelos que os estudantes e os executivos considerem facilmente relevantes. Há alguns anos, com base na minha investigação anterior sobre as capacidades dinâmicas (“dynamic capabilities”), criei um curso pioneiro para o programa de Mestrado em Gestão, que dá ênfase à mudança estratégica e às capacidades dinâmicas. Este curso destacou-se, nomeadamente, por ter sido talvez o primeiro nas escolas de gestão a destacar as capacidades dinâmicas no seu título. No contexto deste novo artigo, o meu objetivo é semelhante, embora mais amplo.  Vou incorporar as diferentes componentes da minha nova teoria (e a literatura de apoio) em cadeiras e cursos de estratégia e criatividade (existentes ou novos) e introduzir conteúdos inovadores na formação de executivos.”

 

Daniela Guerra, PhD Comunicadora de Ciência do CUBE, CATÓLICA-LISBON