Esta semana em Barcelona vi uma máquina na rua que permitia a qualquer pessoa maior de idade, a troco de dinheiro ou de cobrar o seu cartão de crédito, comprar bitcoins ou várias outras “moedas” digitais. Fiquei estarrecido em como a falta de regulação na Europa permite que ativos altamente especulativos sem qualquer valor intrínseco sejam comercializados aos cidadãos na rua e ainda por cima sem serem taxadas nem controladas estas transações, ao contrário de todos os outros investimentos ou compras.
Em abril de 2021, comparei nesta coluna do Negócios a moda das cripto-moedas à bolha especulativa das tulipas na Holanda do século XVII, momento icónico da história financeira mundial que levou o preço dos bolbos de tulipa a valores estratosféricos equivalentes a 50,000 euros cada. Passados alguns meses, rebentou a bolha e, em poucos dias, os preços caíram mais de 500 vezes, de volta à realidade. No caso das cripto-moedas, e depois de um pico em novembro de 2021, nos últimos sete meses o ecossistema das cripto-moedas mostrou sinais de fraqueza, passado de um valor global de mercado de três mil biliões de dólares para cerca de mil biliões de dólares, com queda das principais cripto-moedas para menos de metade do seu valor e com várias das 20,000 cripto-moedas entretanto criadas a colapsarem por completo. É possível que a queda continue ou que haja um novo ciclo de subidas no curto prazo, mas estou mais preocupado do que em abril de 2021 pois todo o ecossistema das cripto-moedas é um desastre à espera de acontecer.
A ideia original da Bitcoin lançada em 2009 é genial, mas maquiavélica, e assemelha-se mais à criação de ouro digital do que de uma moeda. Há um número máximo de 21 milhões de bitcoins que replica o stock limitado de ouro no planeta e garante que as Bitcoins terão algum valor pela sua escassez. A forma de obter novas bitcoins é minerá-las, usando poder de computação massivo para processar e validar transações de forma descentralizada e libertar novas bitcoins. Isso tem um custo de processamento que foi desenhado para ser crescente de forma que o preço da bitcoin tenda a crescer no futuro, replicando a lógica do custo crescente de mineração de depósitos de ouro menos acessíveis. Assim, a Bitcoin foi criada essencialmente como uma versão digital do ouro e teria uma função essencial de reserva de valor, sendo pouco eficiente para um grande volume de transações.
Logo aqui neste desenho há um problema grave de sustentabilidade. A promessa e benefício do mundo digital é que, ao converter produtos físicos (como filmes ou música) em produtos digitais (bits) permite baixar preços, aumentar acesso e aumentar a quantidade, qualidade e sustentabilidade do consumo. Pensem em todo o consumo de música, séries, filmes, que está a acontecer no mundo sem o transporte de nenhum produto físico e a preços imbatíveis através modelos de subscrição, criando uma oferta e procura global de conteúdos. A Bitcoin comete o pecado original de inverter esta lógica virtuosa, usando produtos físicos (poder de computação que consome energia) para criar um produto digital que não tem qualquer valor pois não pode ser consumido e não gera qualquer rendimento. O resultado é que, numa sociedade com escassez de energia, o consumo de energia para validar transações e minerar bitcoins é superior a 130 TeraWhats anuais, mais que o consumo energético de um país como a Noruega.
O enigma em torno do criador da Bitcoin - se é um cientista japonês de pseudónimo Satoshi Nakamoto, se é um grupo de inventores digitais que usa este pseudónimo como nome de guerra - mantém a aura de mistério sobre o universo Bitcoin e permite que o(s) seus criadores façam uma fortuna de biliões sem ninguém saber quem são dado terem acesso a um lote original de 1.1 milhões de bitcoins. Daí o meu argumento que a Bitcoin enquanto invenção é genialmente maquiavélica.
Algumas fraquezas no desenho original da Bitcoin foram abordadas através da criação de outras cripto-moedas chamadas altcoins que tentaram melhorar o conceito, como o Ethereum ou a XRP-Ripple. Só que depois disso o conceito foi replicado mais de 20,000 vezes através de ICOs (Initial Coin Offerings) de cripto-moedas sem qualquer valor ou utilidade, usando a analogia das IPOs (Initial Public Offerings) de start-ups, mas sem qualquer regulação num mercado que se tornou cada vez mais complexo e opaco, confundindo os incautos. Agora há stablecoins que garantem o seu valor em moedas reais, mas essa garantia é feita com base em ativos que não estão auditados ou em outra cripto-moeda (recentemente um destes esquemas – Terra/Luna colapsou por completo fazendo desaparecer biliões de dólares). Há non-fungible tokens que asseguram a autenticidade de produtos físicos (obras de arte digitais) que não têm qualquer valor intrínseco nem qualidade artística na maior parte dos casos. Há corretoras de cripto-moedas que permitem fazer um conjunto de operações especulativas sobre carteiras existentes, realizando por exemplo empréstimos garantidos por cripto-moedas, permitindo que os consumidores alavanquem o seu investimento em ativos digitais. Ou garantindo um juro regular a quem aplica dinheiro numa certa cripto-moeda - este sim já um refinado esquema piramidal de que o próprio Charles Ponzi se orgulharia.
A suportar tudo isto há o argumento que a blockchain é uma excelente tecnologia com inúmeras aplicações e isso é verdade. Mas encontrar aplicações valiosas para a blockchain como tecnologia não requer criar uma cripto-moeda. Essa é a falácia do argumento. E, continuando a metáfora, se a Bitcoin é o ouro digital, o Ethereum é a prata e a XRP-Ripple o cobre, quais são os outros 20,000 metais e porque hão-de valer alguma coisa? Este é um mundo em que cada um dos 20,000 criadores de cripto-moedas tem interesse em popularizar, arriscando previsões otimistas e conceitos de cripto-moedas cada vez mais opacos e especulativos, que replicam o que de pior há no setor financeiro, mas sem qualquer regulação. Por exemplo, um tweet de uma pessoa famosa a dizer que vai comprar uma cripto-moeda específica leva a onda especulativa de apoio que depois se alimenta a si própria. E os mineradores, corretoras e depositários de ativos digitais têm interesse em manter a onda de subida.
Claro que enquanto tudo sobe, todos estes esquemas parecem funcionar muito bem e permitiram criar inúmeros milionários, em particular aqueles que entraram cedo ou os inteligentes o suficiente para vender as suas cripto-moedas na altura certa, ou guardar uma grande percentagem das moedas originais no processo de ICOs, aumentando ainda mais a escassez e inflacionando o valor. E esses milionários inspiram os próximos incautos a entrar no mundo das cripto-moedas.
Agora que o ecossistema das cripto-moedas está a mostrar fraqueza, em parte pelo fim da política de taxas de juro negativas que levou a inflação de ativos financeiros, digitais e agora de bens também, veremos como se comportam as cripto-moedas que são ativos que à partida não valem nada pois não geram valor nenhum. Warren Buffet tem uma sábia e visual metáfora de que quando a maré desce é que se vê quem está a nadar nu. Suspeito que há muitos nudistas neste mar de criptomoedas e alguns já começaram a ser envergonhados. Muitos outros se seguirão.
Filipe Santos, Dean da CATÓLICA-LISBON