A comunicação social e as redes sociais têm tido muita responsabilidade no crescimento dos investimentos em criptomoedas e outros criptoactivos, ajudando a construir a crença no Eldorado relâmpago dos criptobilionários.
Já aqui falámos de criptomoedas e porque vieram para ficar. É que as criptomoedas são necessárias às transferências de valor nos ecossistemas suportados por blockchain. Não sendo massa monetária oficial, excepto no caso das Central Bank Digital Currency (CBDC), as criptomoedas podem ser consideradas uma espécie de moedas complementares circunscritas aos seus ecossistemas.
É aliás provável que o reconhecimento legal das criptomoedas, para além de simples reserva de valor, passe pela evolução da legislação subsequente à directiva 2366 de 2015 do Parlamento Europeu relativa aos pagamentos electrónicos (nota: em Portugal, essa directiva foi adoptada com o Decreto-Lei 91 de 2018).
Ora, desde o descalabro da terraUSD, uma das stablecoins mais importantes até então, temos vivido um cripto-inverno onde as criptomoedas perderam mais de dois mil milhares de milhões de USD (i.e., dois triliões à inglesa), tendo a bitcoin em particular chegado a perder 70% desde o seu pico (de quase 70kUSD) em Novembro de 2021. Será que a volatilidade é uma das características inelutáveis das criptomoedas?
A comunicação social e as redes sociais têm tido muita responsabilidade no crescimento dos investimentos em criptomoedas e outros criptoactivos, tendo ajudado a construir a crença no Eldorado relâmpago dos criptobilionários. Ora, os ecossistemas associados aos criptoactivos têm criado valor económico essencialmente num mundo digital particularmente especulativo e não regulado, o qual se tem mostrado extremamente volátil (nota: a volatilidade é uma medida da variabilidade do valor dos activos no tempo e calcula-se com um desvio padrão).
É que nisto dos investimentos, a volatilidade anda sempre a par do risco, pois as probabilidades de ganhar ou perder são duas faces da mesma moeda. Por exemplo, no jogo da roleta, uma aposta num único número específico é ao mesmo tempo mais arriscado e potencialmente mais recompensador que uma aposta em números pares ou ímpares.
Na primeira aposta, a possibilidade de a multiplicar por 36 é de 1/37 (nota: a roleta tem 37 números, pois inclui o zero) e de perder tudo é de 36/37. Já na segunda aposta, a probabilidade de a duplicar é de 18/37 e a probabilidade de perder tudo é de 19/37. Aliás, neste jogo, é o pequeno desvio probabilístico a favor da casa que vai gerar os seus ganhos, como se se tratasse de uma comissão de 1/37 sobre as apostas em causa. Estas probabilidades são, portanto, uma forma de medir a incerteza subjacente ao risco das apostas.
No caso dos investimentos em criptomoedas que não stablecoin, a incerteza tem sido um facto incontornável, dada a volatilidade do seu valor no tempo. Mas porquê?
Um investimento tem sempre uma expectativa de retorno. Na economia incumbente, as contas são conhecidas, apesar de nem sempre fáceis de interpretar. No final, toda a arquitectura de investimentos directos e indirectos, incluindo os derivados financeiros e os direitos dos mais diversos tipos, estão todos sustentados na criação de valor económico real, envolvendo os activos regulados e sujeitos a registo legal, como é o caso das transacções de matérias-primas, as guias de transporte, o pagamento de salários ou o registo de direitos.
Mesmo assim, os investimentos podem não correr bem, tal como se provou com os desaires financeiros nacionais em 2014 e internacionais em 2008, para dar apenas dois exemplos dos mais óbvios. É que, não havendo criação de valor económico no final da cadeia de investimentos, fica em causa toda arquitectura correspondente (nota: a respeito dos desaires de 2008, aconselho o filme “The Big Short”, onde Ryan Gosling explica tudo tim tim por tim tim, e com imensa graça).
Pois é precisamente por isso que os investimentos em criptomoedas e outros criptoactivos são ainda essencialmente incertos, e, portanto, muito voláteis. Não é uma questão de pensar nesta ou naquela criptomoeda, mas na arquitectura completa do conjunto de ecossistemas baseados nesta tecnologia. Eu explico.
Em primeiro lugar, e só para relembrar, no caso das criptomoedas, ao contrário dos investimentos em empresas tradicionais, em vez de vermos toda essa liquidez reflectida nos direitos de retorno do investimento espelhados nos respectivos contratos (e.g., acções), esses mesmos direitos estão registados de forma indelével nos Smart Contracts da blockchain em causa, onde o retorno assume a forma de uma valorização de criptoactivos.
Mas de onde virá a tal criação de valor económico necessário à remuneração real de cada ecossistema em particular?
O investimento brutal dos últimos oito anos na criação de novas ideias no mundo da blockchain tem estado dirigido à inovação pura, o que é fantástico. Têm sido biliões e biliões de euros, USD, e não só, investidos em projectos de base tecnológica como o mundo nunca tinha visto antes. Muitos desses investimentos chegaram às centenas de milhões de euros ou USD, e alguns mesmo aos milhares de milhões. Enquanto, há uns anos, de entre todos os investimentos na web3, era a Bitcoin a receber a parte de leão, essencialmente especulativa diga-se, hoje são a #DeFi e as stablecoin a concentrar a maioria do valor dos criptoactivos. Então, onde está a criação de valor económico real que todos estes investimentos são supostos estar a alimentar?
Para aferirmos esse lado da economia e discutir o seu impacto na volatilidade das criptomoedas associadas, vamos ter de olhar para dois mundos distintos: (i) o mundo dos activos intangíveis medido pela economia dos dados, e (ii) o mundo dos activos reais tangíveis.
Há anos que os dados já valem mais que o petróleo
O valor da economia dos dados tem ganho terreno de ano para ano. Tornou-se tão importante que as sete grandes tecnológicas, conhecidas como Big Techs, detêm hoje uma capitalização absurda de mais de 9000 milhares de milhões de dólares, enquanto o valor das 256 maiores empresas de comercialização de petróleo não passa hoje dos 6600 milhares de milhões. A economia dos dados está, portanto, sujeita a um fenómeno de grande concentração de valor e geograficamente desequilibrado a favor dos EUA e da China, pois são os únicos países que conseguiram gerar Big Techs.
A verdade é que a nossa vida, tanto das pessoas como das empresas, depende cada vez mais das tecnologias da comunicação. Afinal, quantas horas passamos hoje agarrados ao Smartphone? Muito se tem falado do Metaverso e só espero que o seu sucesso não venha a reforçar ainda mais o referido desequilíbrio, desta vez apenas a favor dos EUA. O que mais faltava agora era ver o Facebook, por exemplo, a controlar e a beneficiar do espaço de comunicação global das transacções económicas, tal como já o faz com as suas redes sociais a todos os títulos.
É precisamente quanto à forma de usufruir dos dados que o mundo da blockchain pode vir a reequilibrar a economia a favor dos utilizadores, empresas ou pessoas, que passam a ser os verdadeiros donos dos seus dados. Todos sabemos que não é o que acontece hoje, apesar do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), pois impera a lei do “li e aceito”, que é como quem diz, “não li, mas aceito na mesma”.
Na verdade, quantos são os que se importam com isso, e, mesmo que se importem, o que poderão fazer? Não é tema para discutir agora, nem a manipulação comercial e política a que acabamos por estar todos sujeitos na esfera das Big Techs. A questão que nos interessa neste momento é em que medida o mundo descentralizado (melhor dizendo, não-centralizado) da blockchain pode vir a alterar os centros de produção de valor económico ao longo da cadeia de valor.
Recordemos que os activos intangíveis da economia dos dados têm estado largamente livres de controlo, seja pelos seus produtores, seja regulamentar e legal, dada a dificuldade de impossibilitar a cópia de tudo quanto é desmaterializado. Pois é precisamente esta a propriedade mais importante trazida pela web3, e a prová-lo está a recente febre dos NFT. Com a blockchain, a desmaterialização dos dados deixa de ser sinónimo de perda de controlo, o que significa uma disrupção na forma como se vai passar a gerir o direito de propriedade, tal como já aqui discuti.
É por isso que a blockchain é a melhor amiga do RGPD, uma vez que, neste mundo não-centralizado, o controlo da informação passa para o lado dos produtores. Uma tal alteração na distribuição do poder negocial sobre os dados ao longo da cadeia de valor também será necessariamente disruptiva para as Big Techs, na medida em que deixam de poder copiar os dados a seu bel-prazer, para com isso criar valor da forma economicamente desequilibrada que temos vindo a constatar.
Com a entrada em cena da blockchain, dado que o poder negocial na criação de valor económico deixa de estar necessariamente concentrado nas Big Techs, tal pode ser uma oportunidade para outras empresas, independentemente do seu espaço económico e geopolítico. Vamos, portanto, assistir a uma alteração estratégica do novo ambiente competitivo (cuja discussão tem pano para mangas e terá de ficar para outra oportunidade). O argumento que quero avançar agora é o da criação de valor a partir da web3 na economia dos dados que tanto tem enriquecido as Big Techs, as tais ao mesmo tempo altamente lucrativas e muito pouco voláteis.
Assim, qualquer ecossistema que tenha como objectivo esta estrondosa criação de valor real é necessariamente lucrativo, e o mais importante é que também perde volatilidade, o que se constatará imediatamente nas criptomoedas associadas. Q.E.D.
Em busca dos activos reais da economia incumbente
A outra área onde a web3 vai criar um valor económico incomensurável virá da sua aplicação à economia real incumbente. Tal como todas as outras tecnologias, a web3 também será adoptada pelos elementos activos dessa economia, só que desta vez o seu impacto será a faísca da 4ª Revolução industrial, tal como já também aqui defendi. Assim, quando a economia incumbente fizer parte integrante dos ecossistemas auto-executáveis, e pelas mesmas razões exactas explicadas no parágrafo anterior, a questão da volatilidade já não se coloca, e valorização das criptomoedas comportar-se-á como uma extensão da moeda fiduciária, a qual vai depender essencialmente do valor económico do seu ecossistema.
Porém, nada de relevante acontecerá sem legislação apropriada e é caso para perguntar o que poderá levar legisladores e reguladores a empreender o ciclópico desafio. A resposta virá das imensas vantagens económicas assentes no ordenamento jurídico de cada democracia. Todos estamos interessados no desenvolvimento económico, e a liderança necessária será uma consequência natural do funcionamento das instituições. Começa sempre com uma visão e uma estratégia, e acontecerá mais cedo ou mais tarde.
É o destino inelutável da tecnologia, e tem sido sempre assim. Só espero que o nosso espaço geopolítico não fique para trás, pois disso depende a nossa vantagem competitiva como sociedade, tal como também já aqui se discutiu. É caso para perguntar uma vez mais: vamos a isto?
Paulo Cardoso do Amaral, Professor na CATÓLICA-LISBON