Farfetch abriu o capital a novos investidores, num momento de crescimento do negócio, apesar dos prejuízos

FOTO LUCÍLIA MONTEIRO

Foi “por amor à moda ” que José Neves criou a Farfetch em 2007 e que — com a crença de que a internet iria dominar a indústria da moda — decidiu lançar no ano seguinte uma plataforma agregadora de marcas de roupa e acessórios de luxo para estas venderem online os seus produtos. E foi também “por paixão”, como escreveu recentemente numa carta enviada aos investidores de Wall Street, que iniciou uma viagem de desafios e crescimento que culmina agora com a entrada da tecnológica na bolsa de Nova Iorque.

A partir de agora, o desempenho da Farfetch nos mercados pode ser acompanhado na New York Stock Exchange (NYSE), sob o carimbo FTCH. Depois de uma oferta pública inicial (IPO, na sigla inglesa) bem sucedida — que lhe permitiu alienar cerca de 13% do capital (segundo a estimativa do Expresso) com um encaixe de 885 milhões de dólares (€754 milhões) e um preço por ação a 20 dólares —, a tecnológica começou a negociar em bolsa esta sexta-feira, já depois do fecho desta edição do caderno de Economia. Este preço por ação pode levar a sua avaliação a subir para 5,8 mil milhões de dólares (€4,9 mil milhões).

Se há três anos a empresa se tornou no primeiro unicórnio (empresa avaliada em mil milhões de dólares) de origem portuguesa, agora volta a fazer história ao entrar na bolsa de Nova Iorque. O motivo para este novo passo? O fundador José Neves já tinha respondido à pergunta há cerca de um ano, ao sublinhar que uma IPO “é a melhor maneira de um negócio conseguir liquidez para os seus investidores”. Wall Street foi escolhida pelo facto de ser aí que se encontra a maioria do capital direcionado ao sector tecnológico.

A liquidez é, aliás, um dos benefícios apontados pelo diretor da Católica Lisbon School of Business and Economics, Nuno Fernandes, para descrever o que um unicórnio como a Farfetch tem a ganhar com a abertura do seu capital a novos acionistas — a par de outros como a “diversificação das fontes de financiamento, a menor custo”, e a possibilidade de “remuneração de gestores e empregados”, ligando “a sua performance à das ações”. Apesar disso, reconhece que a entrada em bolsa traz também pressões e desafios acrescidos, como um maior escrutínio, que passa pelo reporte obrigatório de valor e resultados, “alguns pequenos custos” e um “risco pessoal para os gestores” por estar cotada no NYSE.

Uma evolução natural

“Para um unicórnio só há duas saídas possíveis: ou abre o capital em bolsa ou é vendido a investidores institucionais”, aponta Nuno Fernandes. “É um caminho natural de progressão.” A Farfetch escolheu a primeira, opção que o economista vê como “um bom sinal” do desenvolvimento da empresa que, embora ainda não tenha registado lucros, tem vindo a aumentar exponencialmente as receitas de ano para ano: só nos primeiros seis meses de 2018 foram de 267,5 milhões de dólares (€228 milhões), mais 50% do que nesse período do ano passado.

A nova estreia daquela que é uma das três maiores empresas de comércio eletrónico de luxo do mundo, a par da Net-a-Porter e da MatchesFashion, ocorre num momento favorável para as tecnológicas avaliadas em mais de mil milhões de dólares abrirem o capital. Na verdade, mais empresas estrearam-se em bolsa no segundo trimestre de 2018 do que em qualquer outro trimestre dos últimos três anos — e no primeiro semestre do ano as IPO ultrapassaram em 40% o acumulado no mesmo período do ano passado, em número de operações e capital angariado, com o sector tecnológico a destacar-se em termos de retorno e encaixe. Os dados são do banco de investimento Renaissance Capital, que prevê um aumento das estreias de unicórnios em bolsa na segunda metade deste ano.

Os níveis recorde de valorização das tecnológicas no mercado de capitais criam um ambiente favorável à realização de IPO. O facto de esta semana a Farfetch ter revisto em alta o preço por ação, na sequência do interesse dos investidores, é reflexo disso. A empresa junta-se assim a outras que, como a Spotify e a Dropbox, se estrearam este ano no mercado de capitais.

O que é que a Farfetch tem?

Com um modelo de negócio que permite a marcas de luxo como a Chanel e a Gucci terem uma loja online que as liga de forma simples e fácil aos consumidores, a Farfetch — que cobra uma comissão de aproximadamente 25% aos seus parceiros — tem vindo a revolucionar a indústria da moda ao longo da última década. Em 2017 tinha cerca de 3200 marcas e 935 mil clientes ativos (de 190 países), para os quais contribuiu o mercado chinês, que o fundador definiu como crítico para a empresa: no segmento dos bens de luxo os chineses são quem mais gasta. Além disso, a tecnológica opera numa indústria que pode valer 450 mil milhões de dólares (€384 mil milhões) dentro de uma década.

Entre 2015 e 2017, as receitas da Farfetch duplicaram para 386 milhões de dólares (€329 milhões). Mas estas ainda não se traduzem em lucros: no ano passado, os prejuízos totalizaram 112 milhões de dólares (€95,5 milhões), mais 31 milhões que em 2016. A acumulação de prejuízos tem levado alguns analistas a falar em sobrevalorização das empresas que pertencem a este restrito billion dollar club. Mas, como explicou este ano ao Expresso o fundador, é uma decisão estratégica semelhante à de empresas como a Amazon, que passa por “apresentar prejuízos no curto prazo, mas construir negócios de biliões” ao investir no crescimento da empresa.

Uma “estratégia viável durante um período limitado no tempo”, como nota Nuno Fernandes, que acredita que a empresa já poderia ter lucros se parasse de investir no crescimento. “Felizmente temos no mercado investidores com orientação de longo prazo suficiente para olharem para uma empresa com base no crescimento, tirando dividendos apenas mais tarde.” Francisco Ferreira Pinto, diretor-executivo da sociedade de capital de risco Busy Angels, corrobora. Sem nunca referir a Farfetch, diz que o foco dos investidores nas rondas de financiamento está muitas vezes “na expectativa de estarem a apostar na próxima Google ou Apple”. E recorda que, para “revolucionar indústrias e serviços tradicionais”, são necessários “grandes investimentos no desenvolvimento do produto”, o que pode levar a adiar os lucros para o futuro.

Esse futuro já começou a ser desvendado pelo líder da Farfetch. “Internet of Things, dispositivos comandados pela voz, AR/VR... qualquer que seja o novo veículo que os consumidores escolham, o nosso sistema de API [interface de programação de aplicações] será facilmente incorporado em cada uma dessas vias, da mesma forma que nos adaptámos ao WeChat na China, integrando uma plataforma de e-commerce conversacional na nossa empresa.” É para fazer frente a este e outros desafios, com a convergência entre os espaços online e offline que está a ser desenvolvida na “Loja do Futuro”, que os planos da empresa luso-britânica passam por “um investimento intensivo em investigação e desenvolvimento”, escreve José Neves. “Isso, e o crescimento transversal da nossa marca em vários pontos de interesse a nível mundial e em várias categorias, são alguns dos focos nos anos que se avizinham.”