A humanidade é feita de ciclos – ouve-se por aí – mas nem essa ideia parece acalmar a inquietação que nos assola quando atentamos o mundo (e o país) que nos rodeia. O contexto, na minha opinião, emerge como fracionado, quiçá decadente, em colapso.
Há, na minha perspetiva, quatro traços que caracterizam o cenário em que vivemos: a incapacidade de resposta e organização por parte do poder e dos intelectuais; o atentado aos diretos humanos e, paradoxalmente, o seu uso como escudo; a incoerência como palco social; e a transformação profunda do paradigma comunicacional.
Começando pelo primeiro traço, observamos uma política que sofre com a liquidez do mundo. Dantes a sua classe era composta por intelectuais, ou por eles se rodeava. Havia tempo, análise, escuta, e leitura crítica da sociedade. Hoje parece não haver tempo, o que não se deve apenas ao imediatismo da tecnologia, mas a um individuo moderno que já não aceita a espera, habituado a um mundo em que tudo se alcança em segundos. Cria-se, assim, uma política performativa, onde a imagem precede o pensamento, e o discurso se formata para o consumo, e não para a reflexão.
Os partidos tradicionais, incapazes de se adaptar à nova gramática digital, continuam a falar para um mundo que já não existe, comunicando como sempre comunicaram, ignorando que a sociedade se fragmentou. A extrema-direita, por sua vez, compreendeu esta mudança. Rejeita as instituições na forma, mas não no desejo. Anseia fazer parte do sistema que critica. É uma rebeldia ressentida, uma recusa que esconde um desejo de pertença ao centro do poder.
E, pelo caminho, faz rasteiras aos direitos humanos – o segundo traço que caracteriza o presente. Observamos, por exemplo, a crescente recusa ou incapacidade de empatia. Elon Musk disse recentemente que a empatia é uma fraqueza da civilização ocidental. E estas figuras influenciadoras legitimam uma comunicação que se tornou violenta, não só no seu conteúdo, mas também na forma.
A agressividade é aceite, até mesmo dentro das instituições que outrora assumiam uma aura quase sacra dos bons costumes. A liberdade de expressão é usada como escudo, mesmo quando encobre o discurso de ódio. E há uma confusão crescente entre liberdade de expressão e opinião. O direito à palavra, conquistado com sofrimento, é entendido como direito à impunidade expressiva.
À luz da modernidade líquida defendida por Zygmunt Bauman, a liberdade transforma-se em fluxo: é maleável, rápida e superficial. E neste pântano líquido, acelerado e confuso, nasce um desejo contraditório de ordem, segurança e controlo. Uma necessidade que ameaça a própria liberdade que a criou.
Podemos dizer que a paz social está agora podre. Para muitos, só há paz se houver conflito. A adrenalina do combate substitui o diálogo, e o herói que vence não é um justiceiro ético, mas um falso justiceiro – eficaz na comunicação, hábil na manipulação, idolatrado pelas massas que veem nele um eco do seu ressentimento.
Estas personalidades assumem o palco social, enchendo-o de incoerência (o terceiro traço que observo). Os argumentos deixaram de valer por si e passaram a valer apenas se servirem a convicção de quem os profere. Há uma instrumentalização generalizada do discurso, sendo que o espaço de comunicação se converteu num campo de batalha e de trincheiras. O “nós contra eles” é a gramática dominante. As massas fragmentadas agrupam-se por afinidades de desilusão, descrédito, solidão, e por uma necessidade básica de pertença. Qualquer contraditório é visto como um ataque e o diálogo é substituído por ruído.
E a política segue a trajetória e vira um reality show. Os grupos de fãs substituem os eleitores, e militantes informais vão de arruada nas redes sociais como soldados de uma guerra cultural permanente.
E, assim, chegamos ao quarto traço: a transformação da comunicação. O filósofo Byung-Chul Han diz-nos que os rituais estão a desparecer. Estes são basicamente práticas simbólicas e repetitivas que dão sentido à vida, estruturam o tempo e as relações sociais, marcam transições e criam ordem, pertença e comunidade. Não concebo um desaparecimento, mas uma transformação, pois surgem novos rituais, digitais, rápidos. São ações efémeras de nicho, e tendem a isolar, em vez de unir – um “story”, um “like”, uma “live”. O clique imediato do conteúdo numa sociedade que se tiktokneizou. Esta rede social, o TikTok, é muito usada por jovens que crescem no quarto, submersos no digital, sem aprender a moderar o discurso pela reação olhos nos olhos do outro, sem o confronto com o seu incómodo, e com a dor que a palavra pode causar. Até os adultos supostamente responsáveis na sala já não se encaram – assistimos, por exemplo, quase em direto e através de publicações nas redes sociais, à zanga e fim de uma suposta amizade entre Trump e Musk.
O digital é um terreno de simulação, mas não simula a vida real. É um espaço gamificado, alternativo, onde se mata e se destrói simbolicamente, e onde tudo pode ser dito sem eco real. E essa forma de estar e comunicar migra para a realidade, e contamina o espaço público. A rua torna-se uma continuidade do quarto. O mundo real, por falta de resposta e adaptação ao virtual, pela ausência de mediação, deixa-se colonizar através dos seus códigos, que se tornam cada vez mais agressivos e cada vez menos humanos.
E como podemos evoluir daqui em diante? Acredito que só um esforço coletivo e criador, comprometido com a cultura, a verdade e o bem comum, poderá construir um novo horizonte. Precisamos de um grupo de humanos preparados, que assumam a liderança, não pela força, mas pelo exemplo.
A crise atual resolve-se com mais consciência. Não com mais ruído e combate, mas com mais escuta. É preciso construir rituais, vínculos e linguagem. Só assim se poderá restaurar a confiança numa sociedade justa, plural, inclusiva e verdadeiramente livre.
Duarte Silva, Development Manager for Executive Education