Toda a gente diz que a ordem internacional acabou. O quadro estabelecido em 1945, e baseado nos três pilares da paz, democracia e capitalismo, terá chegado ao fim.
A verdade é que, desde sempre, as certezas em que todos nascemos e vivemos eram historicamente bastante insólitas. Esta situação aberrante surgiu de algo ainda mais invulgar: os escombros fumegantes da maior destruição da humanidade.
Foi no fundo do abismo de Berlim, Estalinegrado e Hiroshima que a humanidade definiu pela primeira vez instituições sólidas que durante 80 anos regularam as nações, promovendo a conciliação, a liberdade e, acima de tudo, uma dinâmica económica incomparável com qualquer anterior. Tirania e guerra foram rejeitadas e os povos fixaram-se na prosperidade material.
Não é difícil mostrar o fim desta ordem. A cada passo vemos violações flagrantes, descaradas e impunes dos princípios em que todos fomos educados. Quem as pratica não são terroristas ou rebeldes, mas líderes legitimamente eleitos daquelas potências que durante 80 anos defenderam a ordem. E também não é difícil entender as razões disso, que eles apregoam, acusando ideologias pedantes de promover tacanhez, parasitismo e corrupção, a burocracia de estrangular o desenvolvimento e paralisar o sistema nacional, a globalização e o comércio livre de gerar desigualdade e instabilidade, a diplomacia de ser hipócrita e oportunista. Após décadas de alegada decadência, é preciso “make America great again”, que “La France revient, l’Europe revit!” ou “pôr Portugal em ordem”.
Além dos slogans existem também ataques abertos aos três pilares. Ataques à paz com dimensão para afetar o equilíbrio internacional houve apenas dois, na Ucrânia e Gaza. Só que, até agora, o resto do globo repudiou essas ações e condenou os agressores. Afirmações acerca do expansionismo americano (Canadá, Gronelândia, Panamá) e chinês (Taiwan) são terríveis, mas ainda só palavras. A escalada de armamento, tal como durante a “guerra fria”, ainda é feita a contragosto e sem militarismo. Pode ser que se mantenha fria até ao fim.
Ataques à democracia são a história da democracia. No entanto, em 2024 o mundo assistiu ao maior triunfo eleitoral da sua história, com sufrágios em 76 países, envolvendo mais de metade da população mundial. Em geral as consultas correram bem, múltiplos poderes instalados foram substituídos e autocratas humilhados. Se subirmos acima da paróquia, a nível planetário a democracia parece mais saudável que nunca.
Ataques ao capitalismo também são congénitos, mas até esmoreceram bastante desde que inimigos abertos, como China e Vietnam, conseguiram sucessos espantosos com uma forma de capitalismo. Paradoxalmente, agora são os amigos que desmantelam o sistema, não em nome do socialismo do século XIX, mas do mercantilismo do século XVII.
Com tantos ataques, não existe ainda uma nova ordem internacional, mas surge já o início da desordem. Não é a primeira vez que vimos isto. Antigamente também havia terríveis razões de queixa dos jacobinos em 1789, bolcheviques em 1917, fascistas em 1922 e nazis em 1933. Só que a “ordem” que eles trouxeram gerou tal horror que todos tiveram muitas saudades da decadência anterior, como no fundo do abismo de Berlim, Estalinegrado e Hiroshima.
Além disso, apesar de tudo, temos de dizer que a nossa “decadência” é muito melhor que as antigas. Com todos os seus defeitos, e são muitos e graves, nunca o mundo viveu um período tão longo de melhorias generalizadas como desde 1945. O planeta hoje está espetacularmente melhor que nunca. Mesmo tendo em conta os males da decadência da dita ordem, a esmagadora maioria da população mundial apoia fervorosamente a paz, a democracia e o capitalismo. Enquanto for assim, e apesar dos esforços dos agentes da violência, despotismo e protecionismo, a ordem mundial permanece.
A situação é grave e perigosa. Mas os esforços dos radicais são tão desmiolados que servem para criar saudades da decadência que eles acusam. Só falta que todos os outros vejamos isso.
João César das Neves, Professor da CATÓLICA-LISBON