A diferença entre estar na segunda volta ou ficar pelo caminho pode ser mínima, mas o impacto é enorme. O candidato que chega ao segundo lugar tem boas possibilidades de ganhar; o que fica em terceiro, mesmo que por uma margem ínfima, vê o seu projeto interrompido.
As eleições presidenciais portuguesas são invulgarmente incertas e tudo indica que haverá uma segunda volta. O elevado número de candidatos, entre 8 e10, e a proximidade nas sondagens entre quatro deles, com um quinto não muito atrás, criam um cenário de fragmentação que desafia qualquer previsão. A diferença entre o segundo e o terceiro lugar pode ser apenas de décimas percentuais, o que significa que a passagem à segunda volta dependerá de detalhes ou do acaso: mobilização no dia da votação, capacidade de captar voto útil, impacto de um debate televisivo ou uma notícia nefasta na véspera da eleição.
Esta proximidade entre o segundo e o terceiro lugar tem consequências profundas. A diferença entre estar na segunda volta ou ficar pelo caminho pode ser mínima, mas o impacto é enorme. O candidato que chega ao segundo lugar tem boas possibilidades de ganhar; o que fica em terceiro, mesmo que por uma margem ínfima, vê o seu projeto interrompido. É por isso que, neste contexto, cada voto individual assume uma importância invulgar: pode ser literalmente o voto que decide quem continua na corrida.
Este equilíbrio frágil tem também efeitos na forma como os candidatos se posicionam. Quem chega à segunda volta não enfrenta apenas o desafio de conquistar novos apoios; enfrenta também a necessidade de mudar de discurso em função do adversário. Se o duelo for entre dois candidatos do mesmo espaço político, a disputa tenderá a radicalizar diferenças subtis. Se for entre candidatos de campos distintos, a narrativa terá de se recentrar na conquista do eleitorado moderado. As zonas de confronto não precisam de ser políticas, podem ser de caráter, percurso profissional ou político, ou mesmo a imagem do candidato e da sua família próxima. Em qualquer caso, a segunda volta transforma-se num jogo de adaptação estratégica, onde a coerência inicial pode ser sacrificada em nome da vitória eleitoral.
É precisamente aqui que vale a pena olhar para o modelo irlandês. Na Irlanda, o Presidente é eleito através do Voto Único Transferível (Single Transferable Vote). O eleitor não se limita a escolher um candidato; ordena-os por preferência. Se o seu candidato inicial não tiver hipóteses, o voto transfere-se para a segunda escolha, e assim sucessivamente, até que alguém alcance a maioria absoluta. O sistema funciona como uma eliminação sequencial de baixo para cima: os candidatos menos apoiados vão sendo retirados e os votos dos seus apoiantes reaproveitados. Tudo se resolve num único dia, embora a contagem dos votos seja por vezes demorada. Em contraste, o sistema português limita-se a aceitar os dois candidatos com mais votos, supostamente as primeiras preferências, mesmo que a diferença entre o segundo e o terceiro seja mínima.
Numa simulação que realizei com base nas sondagens que foram sendo tornadas públicas, uma margem de décimas percentuais pode decidir quem continua na corrida (na minha simulação a diferença oscilou entre 0,2 e 5 pontos percentuais dos votos validamente expressos). Enquanto no sistema irlandês a opinião dos eleitores que votaram nos candidatos menos fortes continuam a contar, porque as segundas e terceiras preferências são consideradas. O resultado reflete não apenas quem lidera na primeira preferência, a nossa primeira volta, mas quem consegue reunir maiorias sucessivas ao longo do processo.
É verdade que o voto útil, tático ou estratégico existe em qualquer sistema, mas no modelo irlandês, este voto tático é mais complexo e não impede o eleitor de apoiar o candidato que mais lhe agrada em primeiro lugar, sem medo de “desperdiçar” o voto, porque sabe que a sua segunda ou terceira opção ainda contará. Isto reduz a pressão para abandonar convicções em nome da viabilidade imediata. No fundo, os eleitores têm opiniões sobre todos os candidatos e não apenas o primeiro.
Portugal usa o sistema de duas voltas, que tem a vantagem da simplicidade, da clareza e da tradição. É, aliás, usado em dezenas de países no mundo, ao contrário da singularidade do sistema irlandês. Contudo, num contexto de grande fragmentação das opiniões na sociedade, como a que vivemos, a experiência irlandesa mostra que há alternativas capazes de refletir melhor a diversidade das preferências dos cidadãos e de evitar que a sorte de décimas percentuais decida quem tem acesso à segunda volta. O problema não é apenas português, o sistema a duas voltas também transforma as eleições presidenciais francesas numa lotaria. Talvez seja tempo de abrir o debate sobre como queremos escolher o nosso presidente no futuro.
João Borges de Assunção, Professor na CATÓLICA-LISBON