Nasci em democracia. Vivi sempre com imprensa livre, sem censura nem medo. Mas os sinais que chegam dos Estados Unidos mostram que até as liberdades mais sólidas podem começar a ruir por dentro.
Não é novidade que a Administração Trump, desde o início do novo mandato em janeiro de 2025, tem adotado uma relação hostil com a comunicação social independente. Um dos primeiros passos foi congelar 268 milhões de dólares previamente aprovados pelo Congresso para financiar a USAID, agência que apoiava meios de comunicação não estatais e promovia a formação de jornalistas em vários países.
Pouco depois, Trump ameaçou o jornalismo de investigação ao sugerir a criação de uma lei que punisse jornalistas que utilizassem fontes anónimas. Um mês após a tomada de posse, a porta-voz Karoline Leavitt anunciou que a Casa Branca passaria a selecionar os meios de comunicação autorizados a acompanhar a agenda presidencial.
Mas as ameaças à liberdade de imprensa não ficaram por aqui. Em maio de 2025, os jornalistas deixaram de poder circular livremente no Pentágono, passando a precisar de autorização e escolta para se deslocarem no edifício. Áreas que antes eram acessíveis sem restrições tornaram-se totalmente interditas. Agora, os profissionais da comunicação ficam confinados à cafetaria e ao pátio.
Mais recentemente, Donald Trump ameaçou cancelar as licenças de rádios e televisões críticas do seu governo, o que levou a ABC, controlada pela Disney, a suspender temporariamente o programa de Jimmy Kimmel (felizmente apenas por seis dias, após fortes pressões do público e dos anunciantes), já depois de o programa de Stephen Colbert também ter sido cancelado.
E quando ainda digerimos estas sucessivas ofensivas contra a liberdade de imprensa por parte da Administração Trump, o recém-renomeado Departamento de Guerra dos Estados Unidos (antigo Departamento de Defesa) implementa uma política sem precedentes: todos os jornalistas credenciados passam a ser obrigados a submeter qualquer informação relacionada com as forças armadas para aprovação governamental antes da publicação, independentemente de ser classificada ou não.
Esta medida, comunicada através de um memorando de 17 páginas, datado de 19 de setembro, representa o ataque mais severo à liberdade de imprensa na cobertura militar norte-americana. O documento estabelece que “a informação deve ser aprovada para divulgação pública por um funcionário autorizado antes da sua publicação, mesmo que não seja classificada”. A exigência abrange também dados obtidos por fontes anónimas, fora dos canais oficiais, uma tentativa clara de controlo total da narrativa militar, algo que não se via há décadas.
Mesmo em 1971, quando Daniel Ellsberg, funcionário do Pentágono, entregou ao New York Times os documentos que ficaram conhecidos como os “Pentagon Papers”, revelando o envolvimento político e militar dos EUA na Guerra do Vietname, o desfecho foi outro. Apesar da tentativa do governo Nixon de impedir a publicação, o Supremo Tribunal considerou a censura inconstitucional e reafirmou a liberdade de imprensa. Hoje, com uma composição mais conservadora, é legítimo questionar se o atual Supremo reagiria da mesma forma.
O não cumprimento da nova política é motivo explícito para retirada de credenciais de imprensa. Cerca de 90 jornalistas que cobrem o Pentágono foram instados a assinar um compromisso de dez páginas, aceitando estas restrições sob pena de perderem o acesso às instalações militares.
A reação dos media
Até ao momento, nenhum dos principais meios de comunicação americanos ou internacionais assinou o documento imposto pelo Pentágono. As redes ABC, CBS, CNN, Fox News, NBC, bem como o New York Times, Associated Press, Reuters, AFP e outros, rejeitaram publicamente as restrições, afirmando que não irão aderir às novas regras.
Assinar tal documento seria abdicar da liberdade de imprensa consagrada na Constituição dos EUA, algo incompatível com a missão jornalística e a responsabilidade democrática de qualquer meio de comunicação. Mesmo órgãos tradicionalmente conservadores, como a Fox News, a Newsmax e o Washington Times, recusaram-se a cumprir as normas.
O Clube Nacional de Imprensa de Washington, através do seu presidente Mike Balsamo, condenou veementemente a política: “Se as notícias sobre as nossas forças armadas tiverem de ser aprovadas primeiro pelo governo, o público deixará de receber informação independente. Passará a ver apenas o que os funcionários quiserem mostrar. Isto deveria alarmar todos os americanos.”
A Sociedade de Jornalistas Profissionais classificou a medida como “alarmante”, afirmando que “esta política cheira a censura prévia, a violação mais flagrante da liberdade de imprensa ao abrigo da Primeira Emenda.”
Em vigor desde 1791, a Primeira Emenda garante a liberdade de expressão e de imprensa. Por isso, esta decisão representa um ataque direto aos pilares da democracia norte-americana, colocando em risco a transparência institucional.
Vários analistas alertam que a imposição de censura prévia cria um precedente perigoso: se a medida se mantiver, pode redefinir a relação entre o governo e a imprensa nos Estados Unidos, restringindo o acesso da sociedade à informação livre e fiável. E quando a imprensa é enfraquecida, enfraquece também a fiscalização democrática.
Organizações independentes têm pressionado pela revogação da política, enquanto muitos jornalistas temem que esta decisão seja apenas o início de um controlo institucionalizado da informação, mais um passo para a limitação da liberdade de expressão.
Num país que historicamente se apresenta como guardião da liberdade, a exigência de aprovação prévia de reportagens no Pentágono pode estar a levar os Estados Unidos a limitar um dos pilares da sua própria democracia.
Uma reflexão pessoal
Nasci já em democracia. Nunca conheci outra forma de viver senão em liberdade — liberdade de expressão, de pensamento e de imprensa. É por isso que olho para o que está a acontecer nos Estados Unidos com inquietação. A história ensina-nos que a liberdade não se perde de um dia para o outro: desgasta-se, normaliza-se o seu limite, aceita-se o seu condicionamento. E o que hoje parece uma exceção pode, amanhã,
tornar-se regra. Se um país que sempre se apresentou como bastião da liberdade começa a tolerar a censura, como poderemos acreditar que o resto do mundo democrático ficará imune? Talvez estejamos, de facto, a assistir ao fim de uma era — a era em que a liberdade de imprensa era um valor universal, e não apenas uma aspiração.
Alexandra Peixinho Abreu, Diretora de Comunicação da CATÓLICA-LISBON