Os partidos não são religiosos, mas o CHEGA usa esse argumento. Apesar da proximidade com algumas das posições da Igreja em áreas decisivas, existem também políticas que chocam de frente com ela. Sobretudo, a atitude agressiva e arrogante não se coaduna com uma presença católica na sociedade, a qual é de diálogo, negociação e moderação.
“O CHEGA é Católico?” Esta pergunta é, sem dúvida, estranha. De facto, não compete a um partido ter religião. São os seus dirigentes, membros e eleitores que tomam opções de fé, não os agrupamentos. Claro que, ao definir a sua ideologia, a associação se confronta com as implicações morais das várias linhas religiosas, implicando um diálogo e confronto. No entanto, por mais que algumas abordagens simplistas o tentem, isso nunca é suficiente para classificar o partido como confessional.
Aliás a longa experiência histórica mostra que é preciso ter muito cuidado nas relações entre os poderes temporal e espiritual. Nos casos em que as autoridades civis e a estrutura confessional tiveram demasiada proximidade, amistosa ou hostil, isso prejudicou seriamente ambas as partes. A experiência portuguesa é nisso particularmente instrutiva, com longos períodos em que os governantes pretenderam, ou submeter taticamente ou perseguir ferozmente clérigos e fiéis. Podemos até dizer que, neste campo, a atual Terceira República constitui um dos melhores períodos de sempre, com a hierarquia da Igreja afastada de lides políticas e os responsáveis nacionais (em geral) respeitosos face aos crentes.
No que toca a este tema, o próprio ensinamento católico é bastante claro. No número 319 do DOCAT, o manual de Doutrina Social da Igreja que o Papa Francisco ofereceu aos jovens na Jornada Mundial de 2016 em Cracóvia, lê-se: “Os partidos elaboram programas que, para serem aprovados, precisam da maioria. Porque uma programática cristã está muitas vezes ligada a posições desconfortáveis, não há nenhum partido no qual a doutrina cristã se encontre 100% retratada. Por isso é que é muito importante que os católicos participem para fortalecerem as respetivas posições e torná-las capazes de alcançarem a maioria.”
Quer isto dizer que um cristão pode envolver-se em qualquer partido? O texto explica: “Pressuposto para um empenho responsável é uma confissão fundamental do partido pela dignidade inviolável do Homem, pelos direitos humanos, pela personalidade e pela defesa da vida, bem como pelo estatuto jurídico da Igreja na nossa sociedade, como está consagrado em diversas constituições nacionais. Em partidos nos
quais é enaltecida a violência ou faz parte do programa o ódio social, a demagogia, a luta de entre raças e classes, nesses partidos os cristãos católicos não devem participar nem com eles colaborar.”
Este último ponto já dá alguma relevância à questão em epígrafe. Será o CHEGA um partido onde estão garantidas as condições para os católicos se poderem envolver? Só que a relevância da interrogação é maior, pois várias das suas declarações envolvem referências explícitas à Igreja. Logo no Manifesto Político Fundador de Abril de 2019 é dito: “O CHEGA considera como heranças indiscutíveis (…) a herança da nossa raiz cristã (…) respeitando o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica não só na estruturação da civilização europeia mas, também, em toda a História de Portugal.” Mais significativo, o fundador, quando fez 40 anos (15 de janeiro de 2023) publicou nas redes sociais uma fotografia sua a rezar numa igreja e a agradecer “o privilégio que Deus lhe concedeu de poder lutar pelo país”. É, pois, ineludível que essa formação usa a orientação religiosa como argumento eleitoral. Será ele legítimo?
Não se podem ignorar fortes proximidades entre as posições do partido e a doutrina da Igreja em áreas decisivas, nomeadamente na defesa da vida e família, na educação e cultura. Estes são os argumentos para responder positivamente à questão colocada. No entanto existem também fortes divergências que, segundo a doutrina acima, podem mesmo consubstanciar uma impossibilidade de participação.
O elemento mais evidente está no tratamento de imigrantes e minorias, de presos e sindicatos, onde muitas propostas notórias do partido chocam de frente com as orientações do Papa e bispos portuguesas. Mas também o tom geral de agressividade e insulto não de coaduna de forma nenhuma com a religião do amor ao próximo e até ao inimigo. Por exemplo, é muito meritório lutar contra a corrupção, bandeira central do partido. Mas a corrupção luta-se em casos concretos e não em atoardas genéricas. Dizer que todos os políticos e todos os partidos são corruptos é completamente falso e não passa de um insulto gratuito e irresponsável, que aliás prejudica a verdadeira luta contra a corrupção.
O pior elemento, porém, é a flagrante arrogância de quem se acha o único iluminado num meio de ignaros. Pode dizer-se que sobranceria não falta no debate político; mas mesmo neste meio indigente, o CHEGA desceu vários graus de ignomínia. Trata-se de um agrupamento antissistema, que considera todos os outros, não apenas errados, mas criminosos, e frequentemente trata-os como tal.
Não é essa de todo, a atitude social católica, que elege o diálogo, a negociação e a moderação: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29).
Pode-se dizer que foi essa atitude que nos trouxe até ao estado atual e que o CHEGA faz a mudança indispensável. Mas isso não é verdade. Não só este método católico raramente foi mesmo aplicado, mas a atitude belicosa e petulante só agrava os problemas. O partido parece-se com os discípulos que perguntam a Jesus: «“Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?» Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os.» (Lc 9, 54b-55).
Para ser católico não basta apregoá-lo. «Nem todo o que me diz: 'Senhor, Senhor' entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu.» (Mt 7, 21).
João César das Neves, Professor da CATÓLICA-LISBON