Faz parte da missão da ANAC “promover e defender a concorrência no sector da aviação civil”, mas não é isso que temos vindo a constatar relativamente à aviação privada e em particular à aviação ultraleve. Os exemplos surpreendentes desvendados na primeira parte desta reflexão revelam que esta parece estar mais interessada no desaparecimento da actividade do que no seu desenvolvimento. 

Esta segunda parte da reflexão centra-se (i) no impacto económico, (ii) em exemplos de países com reguladores sensatos e (iii) em ideias que possam contribuir para nos reposicionarmos como merecemos.  

O impacto económico negativo de um regulador sem visão estratégica 

Quando o regulador interpreta ou aplica a lei de modo a destruir valor económico, os resultados estão à vista. Enquanto nos outros países da Europa cresce a aviação geral e a ultraleve, gerando empregos e negócios (tudo desde pequenas oficinas, a escolas, restauração e hotelaria), em Portugal assistimos a todo um conjunto de entraves originados pelo regulador que acabam por “exportar” o interesse aeronáutico para o estrangeiro. 

é frequente ver aeronaves da aviação geral e planadores registados, por exemplo, na Alemanha, precisamente para escapar ao despotismo nacional. Basta passar pelo aeródromo de Tires e constatar que a percentagem de aeronaves com matrículas estrangeiras é superior a 90%, e isto incluindo as escolas e o aeroclube (nota: em Portugal, as matrículas começam com “CS”). Não será com certeza por acaso ver tantas entidades a evitar lidar com o regulador nacional. 

Na aviação geral, as pessoas e empresas com identidade jurídica em Portugal podem recorrer perfeitamente aos serviços de reguladores estrangeiros para aí certificarem as suas aeronaves. É um direito que lhes assiste no contexto da UE. E ainda bem, pois, quando tal é possível, não ficamos nas mãos de uma legislação e/ou regulação discricionária e tóxica. Por exemplo, para as matrículas começadas por “D”, o regulador alemão passa a renovação dos certificados de voo através de certificadores credenciados no preciso no momento da inspecção, e até no estrangeiro (ou seja, cá). A nossa perda de soberania torna-se evidente, para além de os impostos irem parar ao estrangeiro, mais os custos acrescidos da viagem e estadia dos certificadores. Pelos vistos, tudo isso é preferível a estar a depender da burocracia nociva da ANAC. 

Infelizmente, para a aviação ultraleve é mais difícil, pois trata-se de uma legislação local e não de âmbito europeu como para a aviação geral, e é por isso que há diferenças entre países. É uma aviação particularmente activa por ser mais barata e tendencialmente mais simples. Porém, não deixa de ser hoje a mais fustigada em Portugal devido à ANAC, tornando-a mais cara e, como vimos no artigo anterior, muitíssimo mais complicada.

Para além da falta de regulamentação já referida, o que por si só não se compreende, e das dificuldades de renovação do certificado de voo também já referidos, há mais acções perniciosas por parte do regulador que têm levado à diminuição da actividade aeronáutica, chegando ao ponto de conseguir acabar com a operação em Portugal de alguns tipos de aeronaves. 

Por exemplo, os ultraleves do “Grupo II” (aeronaves com estrutura em tudo e tela, particularmente baratas e ótimas para instrução), já estão virtualmente em extinção por cá. Apesar de ainda existirem alguns instrutores capacitados, hoje resta uma única escola com um único avião desse tipo em instrução, e sem garantias que continue por muito mais tempo. E, sem novos pilotos, o Grupo II está condenado a desaparecer. Foi, aliás, o que já aconteceu ao grupo dos aviões pendulares, pois já não há escolas nem instrutores há muito tempo. Assim, como também não há escolas nem instrutores activos em Portugal para hidroaviões, pelo que, os poucos entusiastas que ainda remam contra a maré desfavorável do regulador nacional fazem-no, mais uma vez, recorrendo aos reguladores estrangeiros. 

O impacto prejudicial à segurança aeronáutica 

Para além do impacto económico, há mais duas vertentes provavelmente importantes, eventualmente esquecidas. 

A primeira é a proficiência dos pilotos. Todos estes constrangimentos fazem com que se voe cada vez menos, até porque há aviões que ficam impedidos de voar durante meses, às vezes anos. Nasce assim a correspondente perda de proficiência por parte dos pilotos quando as suas aeronaves (ou os seus clubes) ficam meses sem as devidas autorizações pelas razões discricionárias já referidas. Sabendo que a maioria dos acidentes se dá por falha humana direta (acima de 85%), esta atitude da  ANAC está a provocar uma situação perigosíssima a médio/ longo prazo, e não estará fora de causa apontar os responsáveis, exigindo-lhes consequências. 

A outra razão é a do patrulhamento do país. Cada aeronave a voar é uma sentinela pronta a reportar qualquer eventualidade, pois os pilotos no ar estão em permanente contacto com os organismos de controlo, e reportam todas as eventualidades. 

Todos os anos, há situações de colaboração com os bombeiros, por vezes ajudando-os a encontrar mais depressa os focos de incêndio, tal como já aconteceu várias vezes, por exemplo, na zona de Benavente. Ou mesmo embarcar bombeiros a bordo das aeronaves para que possam dar instruções directas a quem está no terreno, aumentando a sua prontidão e eficácia. E tudo isto a custo zero para o Estado, porque os pilotos têm demonstrado estar genuinamente disponíveis na prática.  

Consequentemente, reduzir a actividade da aviação de lazer, é reduzir todas estas importantes contribuições (a custo zero) para o país. 

Agora a sério, fará sentido à ANAC perder o seu tempo e gastar recursos para criar entraves à actividade aeronáutica quando afinal seria tão mais fácil fazer exactamente o contrário? 

Exemplos de boas práticas no estrangeiro 

Em contraste com os entraves acima descritos, vários países europeus oferecem modelos de regulação mais flexíveis e reguladores esclarecidos, mantendo níveis de segurança exemplares: 

  • França possui uma regulamentação detalhada para aeronaves ultraleves, cuja certificação é auto-declarativa. Esta abordagem regulamentar moderna estimula a diversidade e o desenvolvimento local, mantendo critérios técnicos bem definidos. 
  • O Reino Unido também adopta uma abordagem nacional para aviões ultraleves, integrando as associações (e.g., BMAA, LAA) na certificação com um âmbito de atuação claro e esclarecido. Este modelo descentralizado confere segurança à operação sem impor verificações desnecessárias. 
  • Países de menor dimensão populacional, mas com forte espírito aeronáutico como a Eslováquia e a Chéquia, têm apoiado muito o desenvolvimento aeronáutico. Não é, aliás, por acaso que muitos dos construtores mais avançados estão sediados nestes dois países. A Eslováquia tem operadores locais privados que tratam de todo o processo de certificação segundo regras claras e estáveis definidas pelo regulador. 
  • Já na Alemanha, a autoridade (LBA) permite todas as classes de ultraleves e um regime de licenças desportivas (SPL). No geral, há cooperação estreita entre aeroclubes e regulador, e prazos curtos para certificação técnica. Este ambiente favorável também cria condições para o desenvolvimento de uma indústria de lazer. 
  • Outro exemplo inspirador é o MOSAIC nos EUA (Modernization of Special Airworthiness Certification) a ser publicada ainda este ano, e a qual vai ultrapassar a Europa a passos largos. Este regime vai reduzir a burocracia ainda mais, quando esta já é significativamente menor que nos países mais avançados na Europa. O MOSAIC vai eliminar limites de peso a favor de critérios de estabilidade voo, aposta nas capacidades técnicas, permite aeronaves ultraleves com quatro lugares (eventualmente seis), simplifica requisitos médicos (como já existe em França), e vai também autorizar alguns serviços aéreos, como patrulhamento e fotografia aérea. Em suma, os EUA apostam na inovação com menos fricção, impulsionando a economia. Não seria um exemplo a seguir? 

 

Em suma, os países que equilibram requisitos técnicos claros com flexibilidade na execução e regras claras e estáveis, tendem a ver dinamismo na aviação de lazer. 

Descentralizar precisa-se! 

Propostas de melhoria para a regulação portuguesa 

Para tornar a regulação da aviação de lazer em Portugal mais eficaz e dinâmica, podemos considerar as seguintes medidas concretas: 

  • Definir indicadores de desempenho dos reguladores. Autoridades como a ANAC deviam ter objectivos claros (e.g., aumento de pilotos nacionais, número de aeronaves registadas, número de escolas ou empresas de manutenção, ...) e indicadores de impacto económico. Estas metas, alinhadas com políticas de desenvolvimento regional, permitiriam avaliar a  relação entre as exigências impostas e a economia. Além disso, seria de exigir a avaliação prévia e séria de alternativas com os agentes económicos antes de criar novas regras, para seguir o princípio “think small first” da UE  para evitar a sobre-regulação e criar condições de desenvolvimento económico para as pequenas e médias empresas, das quais depende a maior parte da economia. 
  • Fortalecer mecanismos de supervisão e recurso. Hoje só se pode reclamar administrativamente após resolução final, e quando o mal já está feito. Há vantagem em criar um provedor/auditor independente para órgãos de regulação, o qual pudesse rever normas internas e práticas. Alternativamente, um comité consultivo de aviação geral (com membros de aeroclubes, escolas, e indústria) poderia funcionar como instância de revisão prévia. Ter um caminho de recurso administrativo célere, e sem medo de “retaliação”, incentivaria decisões mais ponderadas e transparentes. 
  • Delegar e credenciar entidades externas. Tal como já referido, muitos países da UE permitem que associações aeronáuticas credenciadas executem tarefas de inspeção ou manutenção sob supervisão do regulador. Em Portugal, instrutores de voo, engenheiros aeronáuticos ou entidades certificadoras privadas poderiam ser autorizados a realizar vistorias ou auditorias, certificações e verificações de conformidade, seguindo normas aprovadas pela ANAC. Esta descentralização reduziria gargalos nas inspeções e tornaria a supervisão mais ágil. Esta visão não é incompatível com recertificação essencialmente auto-declarativa da aviação ultraleve, como em muitos países da UE. 
  • Simplificar a legislação nacional. Devem rever-se os Decretos-Lei e Regulamentos que acrescentam obrigações para além das exigências europeias de segurança operacional. Por exemplo, eliminar a obrigatoriedade de cercas com alturas exageradas nos aeródromos, isto para evitar interpretações abusivas no terreno de quem pensa estar a aplicar bem a lei; ou a exigência de homologação específica para pequenos aeródromos recreativos privados, quando estes já são objecto de certificação simplificada noutros Estados-Membros. O objectivo é adaptar-se às convenções europeias (como os Regulamentos Básicos da EASA) sem introduzir restrições extras absolutamente injustificadas. O prazo de validade para a certificação dos aeródromos também deve ser erradicado da lei. Conformar a legislação Nacional aos requisitos mínimos da Europa, sem uma única virgula a mais, e lançar mão de todas as excepções e derrogações previstas para impulsionar o sector. 
  • Fomentar o diálogo com a comunidade aeronáutica. Instituir reuniões regulares com representantes de aeroclubes, fabricantes e pilotos permitiria antecipar problemas antes que estes gerem conflitos. A consulta pública aos atores relevantes tem que ser qualitativa, não meramente formal: ouvir verdadeiramente o sector confere legitimidade e evita surpresas (e protestos/reclamações) futuras. 
  • Reconhecer e apoiar a evolução tecnológica. Portugal tem de avançar com a implementação nacional das categorias de ultraleve com MTOW de 600 kg, em linha com todos os outros países. Também deve criar formalmente as bases legais para planos de água para hidroaviões, e legislação adequada para autogiros e helicópteros ultraleves. Estas mudanças abrirão espaço para escolas, eventos e turismo aeronáutico especializados. 
  • Educação e promoção. Finalmente, promover uma imagem realista da aviação de lazer (segura e acessível) atrairá mais cidadãos e investidores. A própria ANAC, por exemplo, poderia divulgar estatísticas de segurança positivas e detalhes de custos operacionais, para desfazer mitos e incentivar voos recreativos bem estruturados. 

 

Portugal pode voar mais alto: da estagnação à inovação 

A regulação estratégica da aviação deve servir para proteger sem impedir, equilibrando interesse público e privado. Os exemplos analisados mostram que a ANAC tem actuado de forma demasiado restritiva no domínio da aviação ultraleve, e não só, gerando impactos económicos negativos e afastando todo o tipo de agentes económicos. Para corrigir o rumo, é necessário aplicar boas práticas reconhecidas na Europa, como cooperação com entidades do sector, regimes de licenciamento ágeis e supervisão baseada em resultados económicos, aumentando assim a responsabilização do próprio regulador. O debate público e as propostas construtivas aqui apresentadas pretendem contribuir para um consenso: mantida a segurança, Portugal deve facilitar a inovação e o crescimento da aviação de lazer, beneficiando a economia, as comunidades locais e a cultura aeronáutica nacional. 

 

 

 

Paulo Cardoso do Amaral, Professor at CATÓLICA-LISBON