A regulação é inevitável em sociedades modernas, mas o seu peso pode ser elevado ao ponto de se transformar num entrave ao desenvolvimento económico e social. Na União Europeia há um reconhecimento oficial deste problema, com compromissos para reduzir os encargos regulamentares em até 25% (e 35% para PMEs). Num sector como a aviação civil, onde a segurança é essencial, surge o desafio de desenhar e aplicar regras proporcionadas, que promovam novas actividades e atraiam entusiastas. Esta reflexão discute o papel atual da ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil) na aviação de lazer.
Os reguladores são agentes económicos
Em Portugal, tal como noutras economias de tradição romana ou francesa, a regulação tende a ser “de jure”, com regras definidas a priori pelo Estado, e seguidas à risca. Já nos países de common law (e.g., Reino Unido, EUA) prevalece uma abordagem “de facto”, onde as forças vivas do sector propõe soluções práticas e o legisladas posteriormente. A experiência mostra que um excesso de regras “de jure” pode ignorar as necessidades reais das partes interessadas e criar processos burocráticos infrutíferos, daí o exagero de legislação já assumido pela UE.
Quando o legislador abdica da flexibilidade, os próprios reguladores ganham demasiado poder sobre os sectores que fiscalizam, e isso é arriscado pois depende demasiado das pessoas e do seu bom senso (ou falta dele). É que o lado negativo das regras não se faz sentir apenas no excesso de burocracia. No caso da ANAC, o problema também passa pela forma discricionária como os seus colaboradores têm decidido sobre a interpretação da lei. Apesar de a ANAC não refutar o diálogo, não deixam de surgir consistentemente episódios de regulação exagerada ou simplesmente mal aplicadaa, com consequências nefastas para todo o sector.
Decisões suspeitas sobre aeródromos regionais
A fiscalização aos aeródromos pela ANAC exemplifica bem o excesso de zelo nefasto para a economia, e a prepotência do fecho do aeródromo municipal de Mirandela é bem exemplo disso mesmo. Uma inspeção da ANAC no final de 2023 considerou a existência de supostas “inconformidades”, tendo decidido encerrar esse aeródromo para voos de lazer. Foram apontados requisitos como a repintura de marcações e, pasme-se, a construção de uma vedação de 2,4m à volta de todo o perímetro. O Aeródromo da Amendoeira em Montemor-o-Novo encontra-se sob a sombra da mesma ameaça, e o seu fecho seria uma estocada mortal na atividade de voo à vela nacional (planadores).
Tal exigência não é nada comum nos aeródromos pela Europa fora, e tem sido por isso fortemente criticada sem qualquer resultado. Por exemplo, o aeródromo de Prievidza (Eslováquia), usado em grandes eventos de planadores, é até internacional (!) e não tem qualquer vedação, tal como muitos aeródromos em
França que conhecemos bem. E o aeródromo municipal de Seia no concelho da Guarda também não se encontra aberto à aviação privada.
Não se percebe é porque é que estes dois aeródromos não podem ser usados pela aviação privada, mas têm autorização para ser utilizados para voos da proteção civil e de emergência médica, com aeronaves de porte significativamente superior ao das aeronaves de lazer, o que demonstra não haver nenhum problema fundamental de segurança. Trata-se de uma discriminação no mínimo suspeita.
Mas o desinteresse na economia do sector patente nas decisões da ANAC não é de agora. Suspeito foi também o encerramento do aeródromo da Covilhã em 2011, o qual, segundo consta, estava localizado em terrenos do próprio INAC (que era o nome do organismo regulador antes de se tornar autoridade). Assistir a um regulador como parte ativa neste tipo de negociata é por si só esclarecedor, tendo a comunidade aeronáutica plena consciência dos interesses que se movimentaram na altura. Certo é que alguém terá beneficiado com a destruição deste equipamento, pois o edifício foi construído precisamente em cima da pista e podia ter sido edificado noutro lado. E isto sabendo que, a poucos quilómetros, a Universidade da Beira Interior alberga o curso de engenharia aeronáutica mais reputado no país.
Até há bem pouco tempo tínhamos mais de uma centena de aeródromos e Campos de Voo espalhados por todo o território nacional. Foram todos autorizados ou certificados em devido tempo, e assim foram sendo utilizados por muitos anos. Porém, sucessivas levas de aplicação suspeita de legislação vieram fazer caducar esses licenciamentos, no mais profundo desrespeito pelo princípio básico de “grandfathering” (direito adquirido). E de facto passámos em poucos anos para pouco mais de duas dezenas de aeródromos e Campos de Voo. E mesmo esses perigam hoje ante a ameaça burocrática incompreensível. Não por defeitos maiores, não porque as estatísticas de acidentes lhes sejam imputáveis, mas, apenas vezes por causa de decisões discricionárias e suspeitas por parte do regulador!
Como consequência, sem registo conhecido de acidentes decorrentes do eventual mau estado das infraestruturas afincadamente encerradas pela fúria burocrática da ANAC, os pilotos portugueses vêm-se encurralados num cada vez menor número de pistas disponíveis, ao invés do que constatamos no resto da Europa. Curiosamente, no norte da Europa, apesar da maior disponibilidade financeira dos seus cidadãos, as autoridades preocupam-se com os gastos desnecessários a que as suas decisões possam levar, e usam escrupulosamente as exceções e derrogações que a legislação europeia lhes permite. É exatamente o oposto do que se passa por cá, senão vejamos. Na prática, Decreto-Lei 50/2010 impõe regras hercúleas para o licenciamento dos aeródromos e, pior que isso, prazos de caducidade para tais licenciamentos. Se a ideia é acabar com a atividade aeronáutica e a economia associada, a ANAC estará no bom caminho. O pior, e que não deixa de ser suspeito, é o facto de a ANAC ignorar as normas europeias, ou que as interprete da forma mais restritiva
possível. É que no artigo 2º referente ao âmbito de aplicação do regulamento europeu 2018/1139 relativo aos aeródromos, refere-se que estes podem ser isentados se não registarem anualmente mais de 10.000 passageiros e mais de 850 movimentos de operações de carga. Mas a ANAC ignora-o!
Será que a ideia é construir dificuldades para alguém possa vender facilidades?
Restrições suspeitas à aviação ultraligeira
A ausência de regulamentação específica em Portugal tem bloqueado o progresso do sector, e sabemos de quem é a culpa. Só não sabemos porquê. Por exemplo, ao contrário dos outros países da UE, em Portugal não existe legislação para:
- ultraligeiros com peso máximo à descolagem (MTOW) de 600kg - a legislação atual não passa dos 450Kg, e a indústria já nem sequer fabrica estes modelos, pelo que a renovação da frota não pode acontecer;
- reboque de planadores por aviões ultraligeiros, quando estes são não apenas permitidos, mas os preferidos noutros países da UE;
- aeródromos em planos de água, ou seja, segundo a lei atual os hidroaviões existentes só podem aterrar em aeródromos convencionais e nunca na água (!);
- autogiros, razão pela qual os existentes estão matriculados noutros países;
- helicópteros ultraleves, também só possíveis fora do registo português.
Em suma, a ausência de legislação adequada fez com que várias formas de aviação ultraleve, e não só, tenham sido relegadas para o limbo burocrático, algumas sem retorno. Esta legislação faz parte da missão do regulador pago com os nossos impostos, mas alguém não está a fazer o seu trabalho, criando condições para que o sector entre em desvantagem competitiva. Se assim for em todos os sectores, o nosso destino só pode ser o de empobrecer continuamente, não por causa de qualquer inépcia da iniciativa privada, mas porque esta fica com os pés e mãos atados pelo próprio regulador. Se é esse o objetivo, é caso para lhe dar os parabéns pela eficácia. Mas há mais.
Burocracia e custos de certificação suspeitos
Além de barrar o acesso a novas tecnologias aeronáuticas na aviação ultraleve, e não só, a ANAC também tem criado entraves nas certificações e renovações das aeronaves existentes. Por exemplo, nos últimos anos, a recertificação periódica de aeronaves ultraligeiras, necessária a cada três anos, tornou-se tão complexa em Portugal, que tem levado muitos pilotos a desistir da atividade para não caírem na ilegalidade. Além disso, a aplicação das regras muda a cada mês que passa, apesar de a lei ser a mesma. Basta perguntar à APAU (Associação Portuguesa de Aviação Ultraleve) sobre o trabalho hercúleo para conseguir ajudar ultrapassar os verdadeiros entraves forçados pelo respetivo departamento da ANAC.
Em vez de processos simples como em todos os outros países da UE, surgem inspeções com excesso de zelo voltadas para pontos meramente burocráticos e
não para a segurança como seria de esperar, mais próprias de ditaduras do que de um país livre e democrático. É que a ANAC tem seguido o lema “não lhes podemos facilitar a vida”, e estou a citar. O excesso de custos financeiros consequente e as dificuldades técnicas incompreensíveis, em alguns casos mais próprias de aviões de linha aérea do que de aviação de lazer, está a levar ainda mais proprietários a vender os seus aviões no estrangeiro. O resultado é a redução suplementar de atividade num sector que em muitos países já representa pequenas indústrias locais, com fabricantes, escolas, manutenção, para-quedismo, turismo aéreo, restauração e hotelaria.
Por outro lado, parece persistir a ideia errada de que a aviação de lazer é privilégio de ricos ou perigosa. Na verdade, estes modernos ultraleves contam com sistemas de segurança avançados, como pára-quedas balísticos, e têm baixíssimas velocidades de aterragem, pelo que a grande maioria dos acidentes ocorre por desrespeito das regras, como em qualquer outro veículo motorizado.
Em termos financeiros, um ultraleve custa o mesmo que um automóvel, havendo naturalmente valores para todas as bolsas. E muitos são de propriedade conjunta, o que é semelhante a ter um carro em co-propriedade. Os custos operacionais também são modestos: uma viagem ao Algarve pode custar cerca de 50 € em combustível (e não requer portagens!), e o valor da manutenção é até inferior aos custos normais dos veículos automóveis. Se por acaso os entraves legais inventados pela ANAC são dirigidos a quem tem mais dinheiro, na verdade, estes acabam por errar o alvo. Dito de outra forma, a aviação ultraleve é tão acessível quanto outra atividade motorizada qualquer, e se há entidade que a tenta tornar elitista é a própria ANAC. Será que faz sentido? É que nos outros países da UE luta-se para o crescimento do sector como forma de contribuir para economia criando empregos.
Burocracia suspeita também nas inspeções às Escolas de Pilotagem
A ANAC implementou um sistema de inspeções sistemáticas às Escolas de Pilotagem que incide, mais uma vez, exclusivamente em rotinas burocráticas duvidosas e sem qualquer tipo de preocupação com a qualidade do ensino. Não deveria a ANAC estar mais preocupada com a existência de novos alunos e com a sua proficiência?
E para quem não acredita, veja-se o caso da recém-criada escola de Pilotos de Ultraleve do Aero Clube de Águeda. Esta escola teve o seu dossier aprovado em finais de 2024, e ainda sem ter tido tempo para oferecer o primeiro curso ao mercado já foi inspecionada, tendo sido identificado um verdadeiro rol de não conformidades! O mais certo é nem levantar voo.
Parece mentira, mas não é!
Como o texto já vai longo, deixo o meu comentário sobre o impacto económico, os exemplos no estrangeiro e o que devemos fazer para recuperar a desvantagem competitiva para a segunda parte desta reflexão.
Paulo Cardoso do Amaral, Professor na CATÓLICA-LISBON