Este artigo é um grito de alerta, talvez infrutífero, mas não posso deixar de o escrever. Surge na sequência de experiências vividas e de reflexões sobre a actuação recente de um regulador em particular. Refiro-me à ANAC, a Autoridade Nacional da Aviação Civil, que infelizmente tem sido um exemplo paradigmático daquilo a que chamo tiranetes.
A aplicação da lei e os tiranetes
Num Estado de direito, é imprescindível que exista lei e serviços públicos capazes de a apoiar e de verificar o seu cumprimento. Esta verificação pode ocorrer no momento da prestação do serviço público, ou mais tarde, em sede de auditoria ou fiscalização. E uma economia saudável depende da eficácia destas funções em todos os momentos.
A nossa desvantagem competitiva como país começa logo na génese da aplicação do código civil, sobretudo quando comparada com países de tradição Common Law, em especial os anglo-saxónicos. Devemos aproveitar os mecanismos disponíveis para fazer evoluir a lei em benefício da sociedade, e isso passa por aprender com os erros.
Um exemplo recente e gritante é o regulamento europeu MiCA (Markets in Crypto Assets), aplicado em vários países da União Europeia desde Julho de 2024. Em Portugal, só recentemente é que o Governo começou a dar os primeiros passos no sentido da aplicação da lei, e continua sem prazo definido para a implementação. Nada nos impedia de ser céleres, pois sabemos bem que na tecnologia a vantagem está em ser o primeiro. Só não avançámos porque alguém tinha condições para não fazer o seu trabalho moral, e isto sem consequências pessoais. Essa é, afinal, a definição de tiranete: uma pessoa com pouco poder formal, mas que exerce a sua autoridade de forma abusiva, autoritária ou mesquinha.
O problema do conteúdo da lei
Quantas vezes sentimos que a lei é redigida por quem nunca teve contacto real com o sector que vai regular? Nos países de Common Law, é essencialmente a sociedade civil a propô-la. Em Portugal, a lei é imposta, e a chamada “consulta pública” raramente serve de garantia seja para o que for.
A responsabilidade moral dos reguladores começa aqui. Cabe-lhes ser a estrutura pública mais próxima do sector regulado, mas isso exige sair dos gabinetes e manter uma relação saudável com os agentes económicos. Mas em muitos casos não é isso que acontece.
Por exemplo, a Associação Portuguesa da Aviação Ultraleve (APAU) organizou recentemente um Fórum com três reguladores estrangeiros (República Checa, França e Espanha), precisamente numa fase em que se discute a evolução da lei do sector em Portugal. A ANAC foi convidada, e esteve presente, mas absteve-se de assistir às apresentações dos seus pares estrangeiros. Faltam-me adjectivos para caracterizar a situação. Contudo, esta atitude não surpreende, pois, apesar dos sorrisos e das promessas de diálogo, o protótipo do projecto de lei concebido pela ANAC para servir de base à proposta do governo não é sequer do conhecimento da APAU. Então onde está a discussão saudável? Estou enganado, ou é típico caso de um tiranete do tipo paternalista?
Os abusos na aplicação da lei
A face mais visível e moralmente condenável dos reguladores está na aplicação da lei pelos tiranetes que, ao longo da cadeia de decisão, interpretam a lei a seu bel-prazer.
Nalguns países, essa liberdade abre portas à corrupção. Não é disso que falo agora, até porque não foi tem sido essa a minha experiência. Refiro-me ao abuso, à arbitrariedade e à mesquinhez na interpretação e aplicação da lei. Os efeitos são devastadores, pois a fricção económica resultante destrói valor com tempo perdido em burocracias inúteis, e empreendedores que pura e simplesmente desistem.
Não é, aliás, por acaso que a União Europeia determinou recentemente a redução em 30% das obrigações regulatórias e da burocracia aplicadas às PME.
Soluções possíveis
Em certos casos, a saída para cumprir a lei passa pelo recurso a reguladores estrangeiros, desde que a legislação o permita. É o princípio do passaporte europeu de serviços. É assim que, ao contrário de um automóvel, uma aeronave pode ser matriculada noutro país da União Europeia, sujeitando-se às regras do regulador desse mesmo país. É, aliás, por isso que a esmagadora maioria das aeronaves da aviação geral não tem matrícula portuguesa. O mesmo sucede com material circulante que carece de certificados de conformidade, muitas vezes obtidos em Espanha quando o nosso IMTT se revela impotente para tal. Pior ainda, quando não há refúgio possível noutro regulador, a actividade económica não é pura e simplesmente possível, dando oportunidade a que a sejam empresas de outros países a ocupar o nosso espaço económico natural. E em todos estes casos nem sequer é a lei que falha. São os tiranetes.
E que mecanismos temos contra hoje isso?
1. O recurso hierárquico permite expor um tiranete à sua estrutura superior. Funciona se o superior não for também ele um tiranete.
2. Existe também o livro amarelo na função pública, e que é equivalente ao livro de reclamações. Parece pouco eficaz, pois o topo da hierarquia apenas não quer estatísticas adversas.
3. E também temos os tribunais. Estes até podem funcionar, mas são caros, lentos, e só valem a pena em casos de valor significativo.
A verdade é que tudo isto é uma questão de cultura e moral. Ser tiranete ou não é uma escolha. Alguns dizem que os tiranetes são resquícios do salazarismo, mas já passaram mais de 50 anos de democracia e recuso-me a acreditar que tal faça parte da cultura portuguesa. Prefiro pensar que nos faltam mecanismos de autocontrolo. Afinal, permitir a existência de tiranetes nas estruturas também é uma escolha.
Caminhos para o futuro
É urgente criar formas de limitar a ação dos tiranetes, a começar pelos reguladores, e podemos aprender com as práticas de proximidade aos sectores económicos dos países de Common Law.
Uma possibilidade será responsabilizar os reguladores através de indicadores de desempenho económico. Estes poderiam ser o ponto de partida de uma política anti-tiranete. Hoje, o tiranete não se preocupa com o impacto económico das suas decisões, pois não paga salários, não presta contas, nem existe forma de medir o
resultado das suas ações na economia. Para ele, um sector em crescimento significa apenas mais trabalho pelo mesmo salário.
Lanço, por isso, este desafio: que cada responsável que se considera justo reflita sobre como garantir que os recursos aplicados ao serviço da lei o estejam também ao serviço do desenvolvimento económico. Que indicadores de desempenho podemos aplicar? Que consequências positivas e negativas podem ter lugar? Para além da justiça resultante, poucas acções terão um impacto tão directo na criação das vantagens competitivas de que tanto precisamos.
Paulo Cardoso do Amaral, Professor da Católica Lisbon School of Business & Economics