Será que o mercado tecnológico americano está numa bolha especulativa associada à inteligência artificial (IA)? Neste artigo analiso os mecanismos pelos quais as bolhas se formam e como se pode antecipar em que fase estão e quando rebentarão.

Uma bolha financeira é gerada por um movimento forte de procura por uma classe de ativos ao ponto do seu valor perder a relação com a realidade, fruto da especulação e de histeria coletiva, mas que parece ser puramente racional do ponto de vista de cada agente económico. As bolhas acontecem ciclicamente na Economia e embora cada bolha pareça diferente (desde bolbos de tulipa no século XVII, a ações de dotcoms no ano 2000), há um processo de formação de bolhas que tem um padrão comum e reconhecível.

A bolha começa quando a valorização financeira de uma classe de ativos tem uma forte subida. Essa valorização começa com uma base real e é normalmente fruto de um evento ou disrupção tão forte que abala o mundo económico que os agentes conhecem. A disrupção aconteceu com o lançamento e rápida adoção do ChatGPT em novembro de 2022. Este momento singular trouxe a revolução do IA como tecnologia poderosa e genérica que se aplicaria transversalmente a todos os setores, em particular ao mundo dos serviços e conhecimento que hoje em dia representa mais de 70% das economias modernas. Passado menos de 3 anos, o ChatGPT afirma ter 800 milhões de utilizadores semanais e os seus competidores, juntos, outro tanto. São mais de 1.5 mil milhões de pessoas, quase 20% da população mundial, que utiliza regularmente ferramentas de IA.

Perante uma disrupção tão grande, ninguém pode ficar indiferente. De repente todas as empresas têm que afirmar que estão a investir em ferramentas de IA, todas as grandes tecnológicas passam a ser empresas de IA fazendo enormes investimentos, e todas as startups criam um ângulo de IA mesmo que tenham realmente pouco a ver com IA. Este é o mundo louco por IA em que temos vivido nos últimos dois anos.

Uma disrupção deste tipo cria grandes vencedores no mercado. Numa corrida ao ouro os vencedores não são os mineiros (só um em vinte encontrará ouro) mas sim os vendedores de picaretas e de máquinas de picaretar. Neste caso, as picaretas são os microprocessadores e as máquinas de picaretagem são os data centers. A Nvidia que desenvolve os melhores processadores conseguiu obter vendas e margem milionárias e tornar-se a empresa mais valiosa do mundo (valendo mais de 4 milhões de milhões) enquanto a OpenAI que lançou o ChatGPT tornou-se a startup mais valiosa do mundo (valendo já mais de 500 mil milhões). As tecnológicas que detêm os grandes centros de processamento de dados na nuvem como a Google, Microsoft e Amazon, viram as suas receitas e margens subir, e quem não os tem (Oracle) decidiu que ia entrar no mercado. Os produtores de máquinas de fazer processadores também ganham, neste caso a ASML. E até os fornecedores de energia para alimentar centros de dados ganham, empresas como a EDP Renováveis capazes de construir centrais fotovoltaicas rapidamente. E os maiores vencedores são o capital humano perito em IA, com arquitetos e programadores de IA a comandarem pacotes remuneratórios de dezenas de milhões de euros.

Mas é tudo isto uma bolha? Não, se a disrupção for realmente real. Mas aqui entra em jogo a histeria coletiva. Nós sabemos que o impacto das revoluções tecnológicas tende a ser sobre-estimado no curto prazo e subestimado no longo prazo. Isso quer dizer que a IA vai mudar o mundo em 20 anos de forma impossível de prever hoje, da mesma forma que a internet mudou o mundo em 20 anos mas não da forma que se previa na era das Dot.com. De facto, ainda vamos quase todos ao supermercado fazer compras, mas toda uma faceta da nossa vida mudou completamente para o digital. No caso da IA vai haver um investimento excessivo em tecnologias e aplicações de IA, o qual vai desapontar em termos de resultados no curto prazo, até toda uma vaga de startups, processos empresariais e modelos de negócios serem criados de raíz para o mundo de IA.

Mas no entretanto esta torna-se uma corrida que ninguém quer perder. As valorizações ao início movimentam- -se devido a resultados acima do esperado das empresas deste ecossistema de IA. Mas com o avançar da bolha as cotações começam a movimentar-se não com base nos resultados, mas em expetativas inflacionadas. É que ser cauteloso nas expetativas não é uma estratégia vencedora por parte das empresas, as quais querem mostrar-se como estando na linha da frente da corrida à IA.

Na fase seguinte, a valorização dos ativos é alimentada não pelos resultados, nem pelas expetativas, mas sim pelo anúncio de mega investimentos e parcerias, de valor totalmente irrazoável, mas que são lidas como sinais de que as empresas estão comprometidas a vencerem a corrida. Anúncios que num contexto normal assustariam os investidores, tais como investimentos de centenas de milhares de milhões em ativos físicos sem retorno claro, empresas que anunciam investimentos milionários nos seus próprios clientes para financiarem as compras dos seus próprios produtos, ou uma corrida multimilionária entre os gigantes tecnológicos para chegarem a um objetivo de inteligência artificial geral que ninguém percebe nem consegue valorizar. Está é a fase que estamos a viver, como bem revelam os anúncios das últimas semanas. A noção de valor começa a ficar desfasada da realidade e a euforia alarga-se a cada vez mais ativos, mesmo aqueles pouco ligados à IA. Os detentores de ativos privados de valor incerto (o mundo da private equity) começam a desfazer-se deles vendendo-os num mercado público inflacionado para realizar liquidez e ganhos. É o que está a acontecer agora nos mercados, com o número de pedidos para IPO num máximo histórico.

Nesta fase, todas as informações inconsistentes com a euforia são ignoradas. O facto das empresas Chinesas desenvolverem IA poderosa com poucos recursos de computação é ignorada. O facto de muitas empresas estarem a ter dificuldade em rentabilizar os seus investimentos em IA é ignorada. O facto de o nível de investimento proposto pelas empresas de IA não ter racionalidade económica é ignorado. Quem contraria a euforia dominante é acusado de não perceber a importância da transformação em curso. Nesta fase vemos grande volatilidade no mercado e quedas abruptas seguidas de recuperação para patamares superiores.

Estão assim reunidos os condimentos para a bolha se formar, exceto um que define o grau de intensidade da bolha e a probabilidade desta rebentar. Esse último fator é o crédito fácil. Quando os investimentos milionários das empresas são feitos a crédito e quando os investidores compram ativos inflacionados com recurso a crédito para se aproveitarem da subida esperada de preços, nesse momento temos as condições perfeitas para uma bolha especulativa inchar anormalmente e poder rebentar com estrondo.

Infelizmente, a regulação no mercado americano é hoje tão fraca que não sabemos quanto da bolha atual é alimentada a crédito, embora anúncios recentes sobre a fraca qualidade do crédito de bancos regionais e a redução histórica do prémio exigido à dívida de fraca qualidade (junk bonds) seja razão de preocupação. O uso descontrolado do crédito ditará quão perto estamos do fim da festa e quão forte será a explosão final. A festa acabará tipicamente, não por um fator de risco externo, mas quando a realidade dececionante dos resultados de empresas importantes de IA se sobrepuser à euforia. E a queda que se seguirá será tão maior quanto maior tiver sido o recurso a crédito para alimentar a bolha, podendo até gerar uma crise no sistema financeiro.

Nesse cenário, pagaremos todos a ressaca financeira e destruição económica. Mas ficaremos com investimentos enormes em processadores e centros de dados que durarão mais de vinte anos e com motores de Inteligência Artificial que irão mudar o mundo de formas que hoje não conseguimos prever.

Filipe Santos, Dean da CATÓLICA-LISBON