Press News & Events

"Também quereis ir embora?"

Segunda, Setembro 3, 2018 - 09:57
Publicação
Diário de Notícias

O escândalo de abusos sexuais a menores na Igreja Católica nunca mais acaba. Após denúncias nos anos 1990, no Canadá, EUA, Austrália e Irlanda, o tema rebentou em 2002, sobretudo nas reportagens do The Boston Globe, dramatizados em Spotlight (2015), o galardoado filme de Tom McCarthy. Inusitadamente, após mais de 15 anos, o assunto volta a dominar as páginas dos jornais. Que significa isto?

Em primeiro lugar, acima de tudo, há que pensar nas vítimas e no seu horrível sofrimento. A pedofilia é sempre um crime infame e nojento, pior se é homossexual e muito pior praticada em abuso de autoridade. Quando essa autoridade tem origem religiosa e sagrada, a perversão torna-se propriamente demoníaca. Perante o impensável, a prioridade absoluta é, como diz o Papa na Carta ao Povo de Deus de 20 de Agosto: "Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só aconteçam, mas encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas." Este é o drama, e os factos são demasiado graves para ficarem submersos em assuntos laterais que, infelizmente, acabam a dominar a discussão.

O aspecto mais ocioso, mas também mais comum, são as teorias da conspiração. Existe um lobbygay na hierarquia católica? Há uma trama dos inimigos da Igreja para aproveitar e empolar estes temas? Que adiantam tais especulações para nós, que nunca poderemos determinar sequer a sua plausibilidade, quanto mais lidar com elas? Verdadeiras ou falsas, absurdas ou razoáveis, teses destas só deveriam interessar às autoridades competentes, religiosas ou civis, que os têm de investigar, resolver e sancionar.

Pelo contrário, os fiéis devem estar gratos pelo alvoroço à volta do caso, que foi e é decisivo para a sua erradicação. Felizmente, a notoriedade da Igreja Católica permitiu denunciar e extirpar este mal horrível. A ignomínia da pedofilia acontece em muitos ambientes e instituições, e os estudos sérios mostram que os da Igreja são ínfima minoria. Mas esses, ao menos, estão denunciados e punidos, graças à cobertura jornalística. Além disso, o facto de a generalidade dos casos referidos ser antiga, anterior à prescrição, manifesta o sucesso da denúncia e fortes medidas que a hierarquia tomou desde os primeiros alarmes. Com tanto alarido, dificilmente a ausência de queixas recentes resulta de ocultação. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer de tantas outras organizações, menos escrutinadas.

"A ignomínia da pedofilia acontece em muitos ambientes e instituições, e os estudos sérios mostram que os da Igreja são ínfima minoria"

Claro que deduzir destes crimes horrendos uma acusação à totalidade dos fiéis e hierarquia é um preconceito tão tonto como desprezar todo um povo por alguns casos de corrupção. Esta extrapolação, também muito frequente, é sempre abusiva e inválida, mas particularmente desadequada no caso da Igreja, que tem características únicas. Todas as instituições humanas são compostas por aqueles que, por alguma razão, lhes querem ou têm de pertencer. A Igreja é a única em que os membros o são devido exclusivamente a uma relação pessoal e comunitária com o fundador, Jesus Cristo, que morreu mas ressuscitou e está vivo e presente na vida dos seus discípulos, vida essa que constitui propriamente a Igreja. Mesmo quem acha esta convicção uma tolice pode compreender a diferença face a uma classe, associação ou clube. Por isso a Igreja é chamada Corpo de Cristo, Povo de Deus e Templo do Espírito Santo.

Além disso, esta instituição única é também única na sua vastidão e duração. Presente há dois mil anos e espalhada pelo mundo, sobrevive recorrentemente a inúmeros e graves dramas, escândalos e ataques. Por ser o que é, sempre atraiu sobre si os poderes do mal, dentro ou fora, como Jesus tinha avisado. Ao longo dos séculos múltiplas forças perversas a perseguem como Pilatos, ou seduzem como Herodes, e muitas vezes aconteceu que "por alguma fresta o fumo de Satanás entrou no templo de Deus", como disse o beato Paulo VI na homilia do 9.º aniversário da coroação, 29 de Junho de 1972. O escândalo actual representa a expulsão final do fumo então denunciado, mas já na Escritura, em particular nos Actos dos Apóstolos e Epístolas, vemos relatos paralelos. Em todos estes casos existe só uma questão relevante, colocada logo no início.

Após a multiplicação dos pães a popularidade de Jesus atingiu, naturalmente, a apoteose. Quando os discípulos o reencontram, o Mestre, em vez de capitalizar a dinâmica, fala em comer a Sua carne e beber o Seu sangue, irritando grande parte dos recém-convertidos pela abundância; "desde então, muitos dos discípulos se retiraram e já não o seguiam. Jesus perguntou então aos Doze: 'Também vós quereis ir embora?'" (Jo 6, 66-67). A resposta de Simão Pedro manifesta que ele está tão perplexo quanto os demais, tão perplexo como nós hoje ao ouvir contar horrores de prelados. Mas Pedro esquece o acessório e agarra-se ao essencial: "Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6, 68).

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

Related Press News

03/01/2022 - 09:50
Observador
A história dos efeitos duma crise no emprego e no rendimento escreve-se olhando tanto para os empregos destruídos durante a crise como para os empregos criados durante a recuperação. Na passagem de ano comemos 12 passas e pedimos 12 desejos. Muitos...
28/12/2021 - 09:49
Jornal de Negócios
A conjuntura pandémica atual, que exibe um novo pico de infeções no final do mês de dezembro, mais as pressões inflacionistas que se sentem na Economia global são fontes importantes de preocupação e provavelmente serão tema de discussão na campanha para...