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Salsicha digital

Quarta, Outubro 10, 2018 - 17:47
Publicação
Diário de Notícias

"As leis, como as salsichas, é melhor não saber como são feitas." É por isso que, mesmo na sociedade da informação, somos em geral poupados a este sinistro conhecimento. Só que por vezes aparece um legislador que, orgulhoso dos feitos, conta tais segredos. Nessa altura relembramos a sábia máxima inspirada pelo advogado e poeta americano John Godfrey Saxe (1816-1887).

No passado 18 de Setembro, o DN trazia uma das peças mais deprimentes acerca da democracia europeia. A finalidade do título, "A eurodeputada portuguesa que foi decisiva na aprovação dos direitos de autor", era evidentemente suscitar o brio nacional por termos uma tribuna com tal influência continental. Se olharmos com mais atenção para o caso, porém, surge toda a indigência moral, política e até intelectual que a situação manifesta.

A circunstância é a aprovação no passado 12 de Setembro da controversa proposta 2016/0280 (COD) de directiva europeia sobre os direitos de autor no mercado digital. O diploma já tinha sido rejeitado a 5 de Julho e, dois meses depois, o Parlamento encontrava-se de novo gravemente dividido. Mas por que razão tão eminentes deputados enfrentam tal hesitação? A resposta é, simplesmente, que o problema é extremamente complexo, intrincado e nebuloso. Estão em causa aspectos vitais da sociedade e economia actuais. Uma decisão errada pode ter terríveis consequências na evolução da nossa cultura e civilização. Por isso o Parlamento titubeava, e por excelentes razões.

Ninguém duvida de que a revolução digital tem efeitos espantosos da nossa vida, que foi e continuará a ser subvertida por um progresso ainda longe do fim. Claro que uma transformação tão dramática, se gera ganhos impressionantes, traz também consigo enormes perplexidades acerca das regras e comportamentos a seguir. No novo quadro, as antigas orientações mostram-se incapazes, exigindo-se grande prudência, tacto e sabedoria na busca de uma nova ordenação justa e equilibrada.

Além disso, após séculos em que os criadores foram espoliados das suas obras, nas últimas décadas o pêndulo está no extremo oposto. Hoje os direitos de autor são protegidos muito para lá do razoável. Que uma obra só entre no domínio público 70 anos depois da morte do produtor, como é regra na Europa e nos EUA, dificilmente se justifica à luz da moral e do interesse públicos. O facto resulta simplesmente da esmagadora pressão dos grupos organizados de criadores e editoras, que capitalizam a seu favor o fascínio contemporâneo pela arte e pelos artistas. O excesso de protecção leva naturalmente à reacção oposta da sociedade, generalizando-se comportamentos que as editoras insultam como "pirataria". Isso será roubo ou apenas manifestação da liberdade cultural que os próprios autores apregoam nas suas obras? É que, suprema ironia, enquanto a arte e a fama dos artistas os proclama como rebeldes radicais, a sua prosperidade advém do mais tacanho capitalismo.

Este era o assunto então em discussão, e seria de esperar que o grupo dos socialistas no Parlamento Europeu tomasse a defesa da liberdade e dos cidadãos contra os interesses das grandes empresas do ramo editorial. Mas a decisão foi precisamente a oposta, e nessa inversão foi alegadamente decisiva a intervenção da portuguesa Maria João Rodrigues, que ocupa o cargo de coordenadora desse grande grupo europeu de deputados. As bases da sua directriz são duas falácias quase inacreditáveis.

Segundo a notícia, o ponto de partida da deputada foi: «Pior do que o que existe não há, temos de fazer passar esta lei.» Mas claro que há! Uma má directiva é muito pior do que uma honesta hesitação. Maria João Rodrigues faz apenas uma vaga ideia das consequências da legislação que ajudou a aprovar, como aliás todos no Parlamento ou mesmo na sociedade europeia. Existe enorme controvérsia entre pessoas honestas e benevolentes, precisamente porque ninguém sabe bem. A arrogância de forçar um diploma nestas condições enevoadas é irresponsabilidade arrepiante. Ela assumiu que o dever de coordenar impunha um resultado, atendendo mais à sua carreira do que ao bem-estar e ao desenvolvimento da Europa.

Interessante é o raciocínio que conseguiu um desfecho diametralmente oposto à natural orientação dos socialistas, ditando o interesse das multinacionais. Como pôde Maria João Rodrigues enganar tantos correligionários? A sua abordagem imaginativa foi lembrar que, além dos interesses de criadores e consumidores, há outro participante no processo: "As grandes plataformas online, dotadas de um poder de quase monopólio." Como Facebook, Google e afins são ricas, deve ser socialismo atacá-las, mesmo danificando a liberdade da internet e criando obstáculos ao acesso à informação, conhecimento e cultura dos cidadãos, sobretudo mais pobres.

Maria João Rodrigues está tão orgulhosa do seu feito que teve de o celebrar no jornal, deste modo levantando o véu que pudicamente cobre as elaborações legislativas. O que surpreende é os magarefes não terem vergonha em mostrar a manufactura de enchidos de tripa, que nos causam tanto asco.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

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