Os intelectuais portugueses adoram abstracções. A realidade é sempre suja, controversa, incerta, aborrecida; muito melhor é viver em teorias, conjecturas, promessas, ideais. Os chavões vão mudando; o do momento é «interior». A 18 de Maio, o proverbial conjunto de personalidades, aqui autointitulado Movimento pelo Interior (MPI), apresentou o canónico manifesto e as inevitáveis medidas.
O professor Luís Cabral, da Universidade de Nova Iorque, já explicou, a 21 de Julho no Expresso, que "o diagnóstico do governo e do MPI está equivocado; e as soluções propostas são, no melhor dos casos, ineficazes". Infelizmente não teremos esse "melhor dos casos" e o movimento saldar-se-á por sério prejuízo para o desenvolvimento nacional e do interior. A origem do erro é a tendência intelectual de viver no subjectivo, sem se dar ao trabalho de verificar as hipóteses.
O interior é uma abstracção. A única entidade que realmente se desenvolve são pessoas; não se desenvolvem terrenos, territórios, zonas. Se os cidadãos abandonam uma região em busca de vida melhor noutras, devem ser respeitados e apoiados, não as terras. A desigualdade constitui grave obstáculo para o desenvolvimento equilibrado, mas a desigualdade entre pessoas, não a desigualdade entre sítios. Pelo contrário, igualizar o território destrói identidades. Há décadas que o Estado se esforça por desenvolver o interior e combater a desertificação; o próprio MPI manifesta o fiasco. O que deveria aconselhar mudar de estratégia, não insistir.
Só há um método realmente eficaz de defesa do interior: o sistema hukou chinês de registo doméstico, impondo a cada um viver na terra onde nasceu. O resultado é a infame privação de direitos de cidadania e acesso a serviços básicos de milhões de migrantes internos clandestinos. Pelo contrário, os quatro pilares da União Europeia, estabelecidos no Tratado de Roma de 1957, são a liberdade de movimento de bens (título I), pessoas, serviços e capital (título III).
Estas afirmações podem parecer exageradas. Afinal, o MPI propõe apenas incentivos, benefícios fiscais, apoios estatais, os tradicionais golpes (os tais que falham há décadas) de burocratas e empresas para aumentar fatias no banquete dos fundos públicos. Talvez alguns reduzam a desigualdade entre pessoas. Só que, como o governo tem pouco dinheiro para satisfazer estas exigências e os serviços centrais nem querem ouvir falar de deslocalização, a única forma de fingir apoio, pelo menos até mudar a abstracção da moda, é a medida com menos custos financeiros, mais danos aos direitos de cidadania, porque mais parecida com o hukou: o corte nas vagas do ensino superior em Lisboa e no Porto, pelo despacho n.º 5036-A/2018 de 15 de Maio.
A prioridade do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior devia ser o interesse dos estudantes universitários e, depois, a qualidade da ciência e tecnologia. Claro que ele não pode atender a isso, pois há décadas os seus serviços estão controlados por professores e instituições, as corporações dominantes no sector. Se isso é mau, esta intervenção, atropelando estudantes, ciência, tecnologia, e até professores e instituições, defende a abstracção do interior. Ao fazê-lo, o ministro exorbita das suas funções, prejudica a sua missão e sofre críticas de todos os quadrantes. Mas, coitado, é obrigado a fazê-lo pelo único interesse superior ao das corporações: a necessidade de o governo mostrar serviço no tema mediático da semana.
O corte é um erro logo em termos intelectuais, por ser genérico e abstracto, sem atender a cursos, escolas, interesses, circunstâncias. É pura arbitrariedade cega e arrogante de quem não liga à realidade para atender a chavões. Mas também é errado em termos académicos, pedagógicos, económicos e sociais. A concentração de estudantes em centros universitários é uma boa ideia, como mostram séculos de experiência. Portugal tem excesso de escolas e de pulverização geográfica para um país do nosso tamanho. Reforçar esse desequilíbrio é prejudicar o desenvolvimento universitário, não promovê-lo. O ministro sabe isto melhor do que ninguém, mas, coitado, não teve escolha.
Pior é a dimensão cívica. Violar os desejos dos estudantes e prejudicar as melhores escolas do país, passando os seus candidatos mais fracos para escolas do interior, não contribui para o desenvolvimento das regiões, com custos para todos. Obrigar estudantes a ir para onde não querem e pais a pagar a estada longe é infame desperdício. Claro que há benefícios, em particular nas escolas não estatais das duas cidades, como a Universidade Católica, onde trabalho, mas isso não impede que a política seja um erro a denunciar.
O interior tem futuro pela sua própria dinâmica, sem precisar das benesses discriminatórias e degradantes do Movimento pelo Interior. Para isso, é preciso que os seus autarcas, em vez de lutar por dinheiros e favores, que há décadas promovem a inferioridade dependente do interior, se deixem de abstracções e se dediquem ao bom governo das suas gentes e terras.
João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.