A SWIFT anunciou recentemente o começo de toda uma linha de evolução com títulos financeiros tokenizados, e isto já em 2025. É uma jogada estratégica extremamente interessante.

No que diz respeito à integração dos serviços financeiros dos diferentes espaços geopolíticos, os serviços da SWIFT são indiscutivelmente dos mais utilizados em todo o mundo. Não são, no entanto, os únicos, pois a China também oferece uma alternativa na sua própria moeda (CIPS - Cross-Border Interbank Payment System) presente em 117 países, porém com uma dimensão económica cerca de cinco vezes menor que a SWIFT.

Numa altura em que os ativos financeiros estão a começar a ser tokenizados na União Europeia, e ao mesmo tempo que nos EUA a promessa é de aceleração desse processo, é interessante ler nas entrelinhas o que a SWIFT vem agora propor, talvez a pensar na sua própria sobrevivência. É que há competidores, como a Ripple, interessados em substituir alguns dos seus serviços. Além disso, a tokenização das massas monetárias de vários espaços geopolíticos, para além das CDBC (Central Bank Digital Currency - dinheiro tokenizado da responsabilidade dos bancos centrais) também parecem constituir uma ameaça aos serviços tradicionais de transferências internacionais. Além desta ameaça, a tokenização também pode oferecer oportunidades à SWIFT, pois, em última análise, os seus serviços podem abranger uma multiplicidade de tipos de títulos e direitos financeiros.

O momento para anúncio desta estratégia não podia ser mais promissor e actual. A empresa refere a esperada inovação que a tokenização irá trazer aos mercados de capitais e à liquidação de ativos financeiros. Estará provavelmente a referir-se ao regime piloto na União Europeia, mas sem o mencionar explicitamente. Não obstante, sabendo que os títulos financeiros são tratados de formas muito diferentes nos diversos espaços económicos, será, portanto, interessante perceber como é que a SWIFT pensa conseguir compatibilizar a tokenização dos respectivos direitos nas diversas jurisdições onde opera.

A SWIFT está a desenvolver atualmente cinco oportunidades de evolução para a tokenização, o que é admirável. São elas, (i) novas responsabilidades dos intervenientes, (ii) standards para a tokenização e respectivas funções, (iii) novos agregados monetários, (iv) interoperabilidade com DLT, e (v) standards para identificação de activos e todo o tipo de intervenientes. Vai mesmo testar algumas das soluções já em 2025, e também anunciou ir fomentar a discussão destes temas com os seus parceiros ao redor do mundo.

O primeiro passo proposto pela SWIFT é a definição de uma taxonomia comum. Neste ponto tem razão, pois essa partilha é essencial para suportar operações que vão cruzar diferentes ordenamentos jurídicos, alguns tão diferentes como a Common Law dos EUA quando confrontada com o Direito Civil em 25 dos Estados da União Europeia.  Neste contexto, a SWIFT propõe de forma muito clarividente encontrar soluções para a autoexecução de transações com valor legal nos vários ordenamentos jurídicos. Para além de fazer todo o sentido, apraz constatar o reconhecimento do conceito de autoexecução por parte de um importante incumbente do sector. A SWIFT refere-se a esta como “funções genéricas suportadas pelos token”, as quais têm vida própria, e isso é, nada mais, nada menos, que a autoexecução ecossistémica.

Quanto aos agregados monetários, a SWIFT talvez ainda não tenha percebido que o dinheiro já está a ser tokenizado atualmente na União Europeia, em Euros e não só, pois refere transferências de valor usando o velho interface de compensação RTGS (Real Time Gross Settlement) entre contas bancárias, enquanto faz uma referência tonta às CDBC (Central Bank Digital Currency). É que na União Europeia já temos os EMT (e-money token) em circulação desde julho de 2024, o que resolve sem qualquer problema as necessidades de liquidação como de qualquer transação com ativos financeiros tokenizados com DVP (Devlivery versus Payment) e sem qualquer recurso a contas bancárias. Só é mesmo preciso que a legislação aplicável aos vários participantes nas transacções permita a compensação autoexecutada com este novo tipo de dinheiro, porque do ponto de vista técnico é uma questão trivial. Será esse o caminho a estudar.

Quanto à interoperabilidade, a SWIFT revela a preocupação com a diferença entre transacções financeiras e informáticas, pois, enquanto as últimas são atómicas por definição, as financeiras não o são na maioria dos casos, nomeadamente quando envolvem vários actores em simultâneo. Assim, a SWIFT também vê na tokenização uma oportunidade tremenda para reduzir, ou mesmo eliminar, a complexidade atual da liquidação das transacções financeiras.

Quanto à identificação dos intervenientes, a SWIFT está preocupada com o facto de as DLT poderem ser manipuladas com recurso a identificadores criptográficos pseudo-anónimos. Acontece que a Europa já resolveu este problema na sua legislação, não só com o regime piloto, mas também com a identificação digital com valor jurídico que entrará em aplicação em 2026. Mas, pelos vistos, a SWIFT não está ao corrente deste facto, uma vez que apenas manifesta essa mesma preocupação. Esta é, no entanto, lícita quando considerados os espaços geopolíticos que não a União Europeia, sabendo que a SWIFT trabalha com instituições financeiras espalhadas por 200 países. É por isso que refere a ISSO 20022 como tentativa de solução. O problema é que nada disto se resolve com modelos de dados, mas com a legislação que se impõe.

Em suma, os temas a estudar pela SWIFT em 2025 demonstram que a empresa já tem consciência dos problemas envolvidos, o que é positivo. Porém, o desconhecimento de algumas soluções técnicas e de legislação já existentes para resolver os problemas levantados também revela alguma ingenuidade.

Independentemente da posição mais ou menos clarividente da SWIFT, esta já percebeu o potencial da tokenização na sua área de negócio. Como incumbente que é, será normal assistir a uma busca de soluções que reforcem a sua posição de orquestrador internacional no contexto das redes existentes. O problema é que a tokenização inclui a autoexecução de funcionalidades o que promete levar muito longe o redesenho das redes dos atores que compõem toda a indústria financeira. A tokenização de ativos e direitos financeiros simplificará essas mesmas redes, pois a autoexecução a priori das regras de compliance pelos próprios produtos e serviços reduz a necessidade de controlo, sabendo que este é o papel central atual de muitos participantes no sector financeiro, incluindo a SWIFT. A este respeito, a integração dessas regras directamente nos ativos financeiros tokenizados é uma das vantagens indiscutíveis da tokenização, a qual já está a ser experimentada na União Europeia num regime piloto. E é provável que esta abordagem se estenda aos próprios detalhes do direito de cada ativo financeiro, em particular os que aparecem descritos nos prospetos. As vantagens para a regulação são indiscutíveis, o que também torna a tokenização extremamente apetecível por quem tem de escrever e/ou fazer aplicar as leis.

A web3 na economia regulada não vai voltar para trás. Tal como a SWIFT, será normal constatar a procura de soluções no contexto do seu atual modelo de negócios por parte dos incumbentes. Porém, a web3 é a tecnologia que se apresenta como mais disruptiva para o sector financeiro até aos dias de hoje dadas as profundas implicações na sua cadeia de valor. Assim, antes de se estudar soluções para o modelo de negócio atual, os incumbentes deverão olhar para o futuro equilíbrio das redes do ecossistema financeiro. Para isso, será necessário compreender o potencial da tokenização de identidades, ativos e direitos, tendo como pano de fundo a legislação dos vários espaços regulamentares e a adoção da tecnologia pelos respetivos atores. As oportunidades estão aí e é bom lembrar que, quando estratégicas, estas se transformam muito rapidamente em ameaças.

Paulo Cardoso do Amaral, Professor da CATÓLICA-LISBON