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Posso comprar um Tesla em bitcoin, mas não o jornal?

Segunda, Fevereiro 15, 2021 - 14:51
Publicação
Jornal Económico

A jogada de mestre do Sr. Elon Musk tem vantagens para além da especulação resultante. Pode ser a pedrada no charco que faltava para encontrarmos soluções onde a blockchain passe a fazer parte do mundo real.

Não, com a bitcoin não.

Habituado a surpreender-nos com ideias fora da caixa, o Sr. Elon Musk, veio anunciar a compra de $1,5bn de bitcoins e que a Tesla as passaria a aceitar como moeda. Foi uma jogada de mestre. Primeiro, pela publicidade grátis, e depois porque a compra de tantas bitcoins fez disparar o valor da moeda, tal como seria de esperar. De mestre!

A Tesla vai aproximar-se da produção de um milhão de veículos por ano, ou seja, cerca de um automóvel por minuto. Uma transação por minuto é uma brincadeira para a bitcoin.

Já com os jornais, a história é diferente. Só em Portugal, são vendidos cerca de 250 mil jornais e revistas por dia. Se toda a gente passasse a comprar o jornal em satoshis (1/100000000 da bitcoin), e mesmo que a Bitcoin fosse utilizada apenas para isso, teríamos de ficar horas à espera para poder pagar, pois a blockchain da Bitcoin não tem capacidade para ir mais rápido. Enquanto o dinheiro físico é uma forma distribuída de transferir valor, já a blockchain, mesmo sendo um sistema distribuído, funciona como se fosse centralizado, e é esse o problema. Confuso? Eu explico.

Com dinheiro físico, as transacções são todas independentes, e não é por eu fazer um pagamento que vou impedir outra pessoa de realizar o seu. Além disso, a massa monetária em circulação está sempre intacta e cada uma das notas ou moedas só pode ser utilizada uma vez por transacção.

Já a bitcoin funciona numa blockchain, o que significa que o dinheiro está desmaterializado, mas não como nas contas bancárias. Os bancos têm as nossas contas à sua guarda, bem como o registo das transacções. Para haver transferências, tem de haver um sistema que interligue todos os bancos e verifique que a massa monetária se mantém intacta, ou que evolui em função de cada política monetária.

Mas no mundo da bitcoin não é bem assim. As contas estão todas centralizadas num livro-diário (em inglês, ledger) e não há nenhuma entidade responsável pela gestão e coerência da informação porque tudo isso faz parte integrante do funcionamento da tecnologia. É essa a magia da blockchain. A bitcoin gere uma massa monetária sem precisar de uma única entidade bancária. A prova é que posso comprar Teslas. Mas não posso comprar o jornal!

A blockchain é um sistema distribuído (e não descentralizado, como tenho visto escrito tantas vezes por aí), mas o registo das transacções é único. É por isso que se chama DTL (Distributed Ledger Technology). É um único livro-diário, apesar de partilhado por toda a gente que queira participar.

A massa monetária de bitcoin tem vários problemas.  Por exemplo, centralizar todas as transacções não é fácil, pois é preciso que uma maioria dos nós participantes verifiquem e concordem com as regras, caso contrário alguém poderia começar a inventar dinheiro, e a tecnologia perderia todo o interesse. Esse trabalho é feito em blocos, e daí o nome de blockchain (cadeia de blocos). Na bitcoin, cada bloco é gravado, em média, de 10 em 10 minutos e guarda alguns milhares de transacções.

Assim, e até ao final dos tempos, a bitcoin nunca conseguirá mais do que uma média de três a cinco transacções por segundo. É por isso que, se toda a gente começasse a comprar jornais em Portugal, teríamos de ficar horas à espera para pagar, já para não dizer que não se poderia comprar mais nada em nenhuma parte do mundo. Nem se poderiam comprar Teslas.

Além de tudo isto, nós continuamos a viver em euros, pelo que as bitcoins terão sempre de passar por Exchanges para se ligarem ao resto da economia. É possível? Sim, mas com as limitações de capacidade transacional, para além da falta de conveniência, e das taxas adicionais a pagar aos cambistas (como a PayPal, por exemplo).

Mas a jogada de mestre do Sr. Elon Musk tem vantagens para além da especulação resultante. Pode ser a pedrada no charco que faltava para encontrarmos soluções onde a blockchain passe a fazer parte do mundo real.

A bitcoin não tem capacidade para absorver o nosso dia-a-dia, mas sabe-se lá se outra criptomoeda não poderá vir a ter. Ainda assim, mesmo que essa tal criptomoeda venha a existir, a legislação tem de evoluir. Sem isso, nada de relevante vai acontecer, mesmo que se comprem Teslas em bitcoin. É que, para mim, o mais importante é mesmo poder comprar o jornal.

 

Paulo Cardoso do Amaral, Professor da CATÓLICA-LISBON. 

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