A dor e o prejuízo devem ser partilhados por todos (acionistas, trabalhadores, cadeia de valor, Estado) pois só essa partilha alargada e justa das perdas causadas pela pandemia permite criar folga financeira para manter o sistema económico em atividade.

Esta semana tenho a honra e responsabilidade de iniciar um novo mandato de Dean da Católica-Lisbon, business school europeia de referência há mais de 15 anos e um hub de atração de talento de nível mundial, proporcionando o desenvolvimento de carreiras extraordinárias. Inicio este mandato no contexto económico e sanitário mais desafiante em muitas décadas. Gostaria de abordar neste artigo alguns dos desafios da liderança em tempos de crise.
 

Realismo versus esperança

Devem os líderes explicar a gravidade das crises ou escondê-la dando esperança às pessoas? A esperança é necessária, mas nunca à custa da verdade. Os líderes não devem mentir, mesmo que isso pareça politicamente correto no curto prazo. Mais vale assumir a verdade, explicando-a e tirando daí as necessárias consequências. Como tentou fazer Graça Freitas ao declarar em fevereiro de 2020 a verdade – que a DGS estava a trabalhar com um cenário de 1 milhão de infetados em Portugal ao longo da pandemia, o que era um dos cenários plausíveis dada a evidência científica existente. Afirmação que na altura pareceu incrível para a maioria das pessoas e que depois teve de rapidamente retirar e reenquadrar para não assustar. Um ano depois, já com cerca de 600.000 portugueses infetados pela covid-19, não teria sido melhor assumir que essa estimativa era realista e preparar a sociedade para esse cenário negativo, em vez de andarmos a correr atrás do prejuízo em cada nova vaga da pandemia? Os líderes habituaram-se a dizer às pessoas o que pensam que elas gostariam de ouvir na esperança de que, na espuma dos dias, as pessoas se esqueçam das mentiras ou meias-verdades que foram anteriormente contadas. E nesse processo, as pessoas perdem a confiança nos seus líderes e no próprio sistema. Mas qual o lugar, neste contexto de realismo, para a criação de esperança? A esperança é o que nos dá força e resiliência para enfrentar os momentos difíceis. Deve ser uma esperança inspiradora, que aponte caminhos de futuro mas seja adequada à realidade. Vender esperança baseado em falsidades é receita para deceções. Os grandes líderes são capazes de inspirar esperança contando as verdades, por muito duras que elas sejam.
 

Coerência versus adaptação

Numa crise profunda, o contexto altera-se com grande rapidez podendo exigir alterações táticas de comportamentos e ações. No entanto, os líderes devem focar-se na situação estrutural e objetivos de médio prazo e evitar agir de forma inconsistente ao reagir aos eventos do momento. Se hoje se diz a todos para ficar em casa para interromper contágios, amanhã se diz para sair e consumir para salvar a economia, e depois de amanhã se diz para ficar em casa para salvar vidas, as pessoas deixam de ter sinais claros para guiar o seu comportamento. Tratar as pessoas como adultos responsáveis não impede de dar diretrizes e traçar linhas de comportamento claras, indicando prioridades e evidenciando os valores e objetivos mais importantes. É, aliás, a definição clara desses objetivos e a ação sistemática para os alcançar que permite implementar uma estratégia consistente. Se a estratégia é manter a pandemia sob controlo de forma a evitar mortes e a sobrecarga do sistema de saúde, tudo isto sem destruir a capacidade produtiva da economia e sem prejudicar a educação das gerações futuras, então persigam-se esses objetivos de forma sistemática, sempre com disciplina, mantendo o rumo apesar das adversidades.
 

Salvar o presente versus construir o futuro

Já no contexto empresarial, as organizações desenvolvem estratégias adaptadas às suas capacidades, ambição e contexto. Uma pandemia provoca uma alteração radical do contexto e pode exigir uma alteração de estratégia. E esta pandemia traz-nos uma realidade profundamente alterada durante 18 meses, gerando um mundo diferente a partir daí. Cada líder, com as suas equipas, terá de perceber as alterações estruturais desse novo mundo e desenhar uma nova estratégia, a qual tem de começar a ser implementada em período de crise profunda. Nesse processo, a dor e o prejuízo devem ser partilhados por todos (acionistas, trabalhadores, cadeia de valor, Estado) pois só essa partilha alargada e justa das perdas causadas pela pandemia permite criar folga financeira para manter o sistema económico em atividade. Neste contexto, ganha uma dimensão extra o conceito de “liderança com propósito”, definida como aquela que alinha os investidores, colaboradores, clientes e outros stakeholders relevantes através de um propósito partilhado que vai para além do interesse direto dos mesmos. As empresas que já tenham um propósito claramente definido e aceite por todos têm certamente agora uma vida mais fácil – desde a comunicação à motivação dos seus colaboradores, e à lealdade em toda a cadeia de abastecimento.
 

Proteção individual versus sobrevivência coletiva

Cada um de nós pode ser líder a múltiplos níveis – do seu núcleo familiar, da sua comunidade, da sua empresa, do seu país. Em momentos de crise, a sobrevivência coletiva depende da capacidade de cada um de nós de liderar com o seu esforço e exemplo, aos níveis que sentir mais paixão e capacidade de ação. Uma sociedade com liderança distribuída é uma sociedade mais resiliente e robusta, capaz de enfrentar os maiores desafios. E em tempos de crise profunda, ser líder é uma responsabilidade acrescida mas é também um chamamento. Um chamamento que, numa situação de pandemia como esta em que se agudizam desigualdades e os mais vulneráveis são os mais expostos, exige uma solidariedade profunda e nobre. Como aquela que devemos ter pelas gerações mais seniores que tanto deram a este país e a quem tanto devemos.
 

Em resumo, ao contrário das lideranças populistas que distorcem a realidade para o seu próprio interesse, inventando crises e conflitos que não existem, um contexto de pandemia provoca uma crise objetiva que tem de ser gerida com verdade, firmeza, sabedoria e consistência. A realidade que vivemos é muito desafiante e não pode ser lidada com soluções simplistas nem ideologias espúrias, mas sim com o pragmatismo dos equilíbrios difíceis, como os preconizados neste artigo. Acima de tudo, liderar é servir os outros e procurar o bem comum trazendo prosperidade ao ecossistema de que a nossa organização faz parte. Esse é o propósito que nos deve guiar.

 

Filipe Santos, Dean da Católica Lisbon School of Business & Economics​