Esta coluna trazia na semana passada um texto, "Proletariado burguês", que, como seria de esperar, deu polémica. Isso é saudável e até adequado ao período do 25 de Abril e do 1.º de Maio. Aspecto curioso é os críticos não notarem que a sua argumentação reforçou a posição do texto que repudiavam.

O artigo afirmava que Portugal tem uma lei laboral muito rígida que, aplicando-se apenas a certos trabalhadores, cria enorme disparidade na mão-de-obra, entre privilegiados e desvalidos. Esta tese, evidentemente contundente e controversa, era suportada por estudos e dados internacionais, comparando os mercados de trabalho europeus.

A maioria dos intervenientes argumentou que eu, autor do texto, sou um privilegiado. Ora isso é indiscutivelmente verdade, mas quem o diz não entende que, ao afirmá-lo, confirma em pleno a tese do artigo. Este defendia precisamente que existem em Portugal muitos trabalhadores que, como eu, gozam de regalias, protecção, segurança e bons rendimentos, enquanto largas camadas da mão-de-obra vivem e trabalham sem a protecção dessas leis, sendo exploradas e oprimidas. Para descredibilizar o texto, que tanto os enfurece, os comentadores confirmam precisamente a tese desse texto.

Se os críticos tinham razão (eu sou privilegiado), qual o erro do raciocínio? Precisamente o facto de não entenderem que, em certa medida, estão na mesma posição que eu. Claro que os pobres não perdem tempo a debater artigos de jornal. Uma conversa destas só existe entre privilegiados. A diferença é que alguns admitem sê-lo, enquanto outros, precisamente como dizia o texto, insistem em se considerar proletários sendo burgueses.

Como puderam cair nesta armadilha? A resposta é que o debate seguiu as três regras básicas das polémicas superficiais. A primeira é que não se discutem ideias ou factos, atacam-se pessoas. Ninguém criticou os dados do artigo ou apresentou alternativas. Usaram-se insultos em vez de argumentos, julgando assim ganhar a discussão. Não interessa se quem fala tem razão; basta afirmar que é desprezível, refutando sem mais as suas afirmações. Nem sequer é preciso considerar o que é dito, porque da boca dessa gente nunca sai nada de válido.

O segundo ponto, deduzido do primeiro, é o uso permanente de uma dicotomia simplista e drástica entre bons e maus, vítimas e agressores. A única questão relevante é localizar o orador relativamente ao nosso preconceito, assim avaliando tudo automaticamente. Esta é uma forma muito cómoda de discutir, poupando imenso esforço. Quem, situando--se do lado errado, é mau, nunca diz nada acertado, estando irremediavelmente enganado, enquanto o lado certo tem invariavelmente razão, diga o que disser. Isso dispensa-nos de considerar as teses concretas que são aduzidas. Claro que, se um dia os nossos partidários vierem a usar essas mesmas teses, elas passam imediatamente a excelentes.

O engano tem ainda outro aspecto. A terceira característica destes debates ideológicos é ficar sempre pela abstracção, sem nunca chegar a morder na realidade. No caso das leis laborais, políticos e sindicatos limitam-se a afirmar direitos genéricos e subjectivos, sem se preocuparem com os meios concretos de os atingir. Uma vez formulados na lei, estão garantidos, nunca se falando de produtividade, condição indispensável de os assegurar na prática. Por isso é que as tais regalias não chegam a todos, forçando alguns a sacrificarem-se para outros receberem mais do que produzem.

Os portugueses são um povo compassivo, com elevada preocupação pelos desfavorecidos, criando inúmeras normas, sistemas e iniciativas de combate à iniquidade. Por isso, os críticos do referido texto são pessoas sérias e sensatas, que falam por preocupação com a justiça. Apesar disso, Portugal mantém-se como uma das sociedades da Europa com maior desigualdade, que as instituições agravam mais do que resolvem. O paradoxo explica-se pelos três elementos referidos.

O modelo rudimentar de vítimas e agressores encaixa bem quando o problema nacional está na luta de classes entre patrões e empregados. Mas fica cego a questões de disparidade entre trabalhadores incluídos e excluídos, como também só detectou demasiado tarde os escândalos bancários, que são injustiças entre patrões. Por outro lado, o terceiro elemento, afirmando direitos sem lidar com as condições da sua implementação, conduz ao flagrante desinteresse nacional pelo investimento, empresariado e inovação, condições indispensáveis de equilíbrio social. O nosso quadro político anda há cinco anos centrado em exigências de funcionários e pensionistas, ignorando a dramática decadência produtiva, com queda do capital e população, que precipitará a próxima crise. Mas como, em terceiro lugar, atacamos pessoas sem debater assuntos, nunca entendemos a verdade que assiste aos nossos adversários. Como o governo é de esquerda, quem o critica tem de ser neoliberal, gente que nunca diz nada de jeito.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.