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Os golpes de Xi podem ser, não os caprichos de um autocrata narcisista, mas tentativas desesperadas de manter o poder nas mãos de um partido totalitário numa sociedade do século XXI.

O mundo vive hoje assombrado pela decadência de uma das maiores realizações económicas de sempre, em derrapagem para um dos grandes pesadelos do passado. Para entender o drama é preciso recuar 300 anos.

O projeto comunista de criar uma economia planeada, sem ganância e incompetência privadas, é um dos mais magníficos empreendimentos da humanidade. Idealizado no século XVIII, e prometendo acabar com a miséria, desigualdade e exploração numa economia ordenada, justa e dinâmica, o modelo só se viria a concretizar na URSS, a qual, após os inevitáveis percalços iniciais de Lenine, de 1917 a 1924, atingiu o sucesso no consulado de Estaline, de 1928 a 1953, sobretudo com a vitória na “grande guerra patriótica” de 1941 a 1945. Na época em que o sistema capitalista, com a depressão e a guerra, mostrava a sua decadência, este êxito soviético espalhou o comunismo por todo o mundo.

Todos sabem que, após esse episódio triunfante, o modelo estalinista desabou vergonhosamente em 1989, após décadas de terrível incompetência, opressão e apatia. Para muitos, a derrocada provou irremediavelmente o falhanço do comunismo; só que, quando aconteceu, estava já em curso a variante que traria novo fôlego ao sistema coletivista, recolocando-o no centro da dinâmica mundial.

Deng Xiaoping chegou a líder do Comitê Central do Partido Comunista a 8 de março de 1978, lançando uma drástica reforma. A nova orientação baseava-se em dois pilares: no campo político, estabelecia-se uma rotação de dez anos na direção do partido e do país, evitando o esclerosamento da governação; no campo produtivo era dada liberdade de iniciativa empresarial, primeiro em Zonas Económicas Especiais, depois em todo o país.

O resultado, como todos também sabem, foi espantoso. Nos 45 anos seguintes, a China transformou-se numa superpotência, com influência global. O produto decuplicou nessas décadas, sendo, em paridades de poder de compra, já o maior do mundo. Em termos diplomáticos, o país assumiu-se como uma referência central do planeta, desafiando as hegemonias anteriores. Mais importante, este sucesso, tão ou mais retumbante que o de Estaline em 1945, provou definitivamente que uma economia comunista pode funcionar bem e crescer a sério.

Só que agora são crescentemente visíveis os sintomas do velho estalinismo. Xi Jinping, líder do Comitê Central do Partido Comunista desde 15 de novembro de 2012, tem desmantelado as reformas do seu brilhante antecessor. Primeiro, violando a regra governativa, fez-se reeleger em outubro de 2022 para um terceiro mandato à frente do partido, algo igualado apenas pelo fundador Mao Zedong. O atual culto da personalidade e a concentração de poder só têm paralelo no maoismo dos anos 1960, como no estalinismo dos anos 1940.

Além disso, as interferências sobre a liberdade económica são crescentemente intensas e danosas. Sucessivos pacotes, como as “três linhas vermelhas”, “prosperidade comum”, “iniciativa do cinturão e rota”, “Made in China 2025”, etc., traduziram-se num controle cada vez mais apertado das empresas públicas e privadas. Em particular, a intervenção pessoal do líder em 2020 contra o Ant Group e outros negócios digitais, destruiu a vantagem tecnológica chinesa que então assustava o mundo. Hoje, fortes suspeitas de manipulação estatística e informativa, bem como o medo da excessiva e caprichosa regulação, afastou muito do investimento nacional e estrangeiro. Naturalmente que o ritmo de crescimento se tem vindo a ressentir (o Vietnam, o único outro caso de sucesso económico coletivista, apesar das diferenças, segue trajetória paralela).

Esta decadência da economia e sociedade chinesas será muito mais influente que a queda soviética há 35 anos. A dimensão económica, mas também política, diplomática e até demográfica, são muito superiores à da Rússia de então. Ninguém sabe o que acontecerá, e a China, uma das civilizações mais antigas e ricas da humanidade, tem repetidamente surpreendido o mundo com as suas glórias e misérias. Aquilo que já sabemos é que poucos terão algo a ganhar com um colapso chinês. A maior ameaça da China para o mundo está, não no seu apogeu, mas na sua derrocada.

Mais interessante é saber os motivos deste recuo na solução Deng. Pode dizer-se que ela sempre foi frágil, refém de um qualquer Estaline embriagado de poder. Mas existe uma explicação mais perturbadora: a China em 1978 estava ainda numa fase embrionária da industrialização. O modelo Deng funcionou bem num país pobre e rural. Depois do estrondoso e inesperado sucesso, a atual sociedade chinesa, ainda com um nível médio semelhante à América Latina, é muito complexa, com zonas e classes ricas e sofisticadas, ansiando por uma vida diferente.

Isso significa que os golpes de Xi podem ser, não os caprichos de um autocrata narcisista, mas tentativas desesperadas de manter o poder nas mãos de um partido totalitário numa sociedade do século XXI. Isso pode dizer-nos que, afinal, o estalinismo não é um erro de ditador, mas uma fase inevitável do sistema comunista.

João César das Neves, Professor da CATÓLICA-LISBON