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O que faz uma boa política pública? (IVAucher não. Creches gratuitas sim)

Thursday, February 18, 2021 - 12:49
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Jornal de Negócios

Em política, por vezes, é preciso ter a humildade de assumir – “pareceu-nos uma boa ideia na altura, mas agora de facto vemos que não faz sentido”. Mais vale dar um passo atrás agora do que gastar 205,6 milhões de euros dos contribuintes num programa complexo e caro com eficácia duvidosa.

Um governo deve desenhar e implementar políticas públicas que corrijam desigualdades e falhas de mercado, promovam a justiça social e conduzam a uma maior prosperidade coletiva dos cidadãos, no presente e no futuro. Mas o que define uma boa política pública? E como podem ser analisadas as políticas públicas existentes em Portugal? Dado que as políticas públicas normalmente custam dinheiro aos contribuintes, deve haver cuidado a analisar a sua eficácia e eficiência, bem como realizar uma análise alternativa de opções de política. Ao desenhar uma política pública é importante responder às seguintes perguntas:

1. Qual o objetivo de política a alcançar com a medida proposta?

2. A medida é clara no seu modelo de funcionamento e implementável conforme desenhada?

3. A medida é eficiente, tendo uma previsão de custo-benefício favorável?

4. A medida é temporalmente ajustada e tem efeitos positivos no longo prazo?

5. Há formas alternativas, mais simples e eficientes de atingir os objetivos de política?

6. A medida tem consequências não intencionais negativas gerando distorções na economia?
 

Estas são reflexões importantes para que o processo de desenho e implementação de políticas tenha sucesso em atingir os resultados propostos, aumentando o bem-estar dos cidadãos.

Neste artigo gostaria de exemplificar a importância de boas políticas públicas analisando duas medidas inscritas no Orçamento do Estado para 2021, uma delas que considero uma péssima política pública e outra que considero uma excelente política pública. A péssima política pública vai custar mais de 205 milhões de euros em 2021. A excelente política pública apenas 11 milhões.

A péssima política pública é o tão falado IVAucher – programa de apoio e estímulo ao consumo nos setores do alojamento, cultura e restauração (artigo 405 do OE 2021). E porquê? Porque é uma medida complexa, cara, desajustada do seu propósito e que vai criar uma estrutura permanente para um objetivo claramente transitório. Ora vejamos.

O que o IVAucher tenta fazer é promover um aumento do consumo das famílias em benefício de setores de atividade particularmente afetados pela pandemia através de um modelo em que o IVA pago pelos consumidores num trimestre é creditado numa conta que permite aos consumidores receberem descontos diretos nos seus consumos no trimestre seguinte. Parece uma ideia inteligente de fazer o “nudging” do comportamento do consumidor e promover a recuperação económica. Mas não é.

Em primeiro lugar, esta medida incentiva um boost no consumo daqueles que mantiveram rendimento durante a pandemia e que agora recebem o IVA de volta se consumirem mais. Ou seja, dá àqueles que têm mais rendimento um valor que será pago em perda de receitas pelo Estado, logo levando a mais impostos futuros para todos, sendo uma medida regressiva que beneficia os mais ricos ou os menos afetados pela pandemia. Mas será que vai incentivar o consumo? Os cidadãos portugueses já atravessaram três confinamentos durante os quais adorariam consumir e viajar, mas não o podem fazer. Como a medida tem um plafond de 200 milhões de euros poderá levar a uma corrida desenfreada ao consumo nas primeiras semanas de desconfinamento até esgotar o plafond, o que vai contra todas as regras de segurança e desconfinamento gradual. Mas se esperarmos até que a situação sanitária seja totalmente segura antes de lançar o programa, é provável que o consumo já dispare naturalmente, como aconteceu no 3.º trimestre de 2020, e a economia esteja em franca recuperação, não sendo necessário o programa.

Adicionalmente a medida é complexa e de cara implementação. Só o concurso de adjudicação para a criação de um sistema de gestão de pagamentos para o IVAucher, lançado em novembro, está previsto custar 5,6 milhões de euros! E o sistema vai exigir milhões de horas gastas a perceber como o programa funciona, como pode ser adotado e a adaptar sistemas de pagamento. Tudo para quê? Para dar descontos aos consumidores com mais capacidade económica (se estes aderirem) incentivando um consumo numa altura em que o consumo já poderá estar a aumentar.

Haveria alternativa? Sim, por exemplo, pegue-se nesses 200 milhões de euros e reforce-se os apoios diretos às empresas dos setores afetados, mantendo a capacidade produtiva intacta para permitir uma retoma forte. Ou então decrete-se a redução do IVA no primeiro trimestre nos setores afetados, o que beneficiaria toda a população e daria um boost de consumo mais natural e transversal a estes setores.

Em política, por vezes, é preciso ter a humildade de assumir – “pareceu-nos uma boa ideia na altura, mas agora de facto vemos que não faz sentido”. Mais vale dar um passo atrás agora do que gastar 205,6 milhões de euros dos contribuintes num programa complexo e caro com eficácia duvidosa.

O exemplo contrário do que pode ser uma excelente política pública é a extensão da gratuitidade de creche a mais cidadãos. Esta é uma medida orçamentada em 11 milhões de euros e descrita no Artigo 159 do OE 2021: “Em 2021, o Governo procede ao alargamento da gratuitidade de frequência de creche a todas as crianças que frequentem creche pública ou abrangida pelo sistema de cooperação e cujo agregado familiar pertença ao 2.º escalão de rendimentos da comparticipação familiar.”

Porque é esta uma excelente política? Porque sabemos que, para o desenvolvimento intelectual e humano das crianças, a educação nos primeiros três anos de vida é fundamental. Porque as crianças de famílias mais desfavorecidas têm uma desvantagem intrínseca nas condições materiais e lúdicas do seu meio familiar. Porque os pais das crianças de famílias desfavorecidas que precisam de trabalhar para sobreviver por vezes não o podem fazer por terem crianças pequenas a cargo.

É uma medida simples de implementação por já existirem dados sobre o rendimento da população e existir um sistema de creches públicas e sociais que presta este serviço. Tem efeitos positivos de longo prazo, beneficia as famílias mais desfavorecidas e promove a inclusão social. Qual o seu defeito? Apenas pecar por timidez. O alargamento, face à política anterior, abrange apenas mais o primeiro filho de famílias no segundo escalão de rendimentos. É pouco, é tímido. Em política é também preciso a visão arrojada de construir o futuro. Assuma-se novamente a educação como paixão e replique-se o enorme sucesso que foi a política de gratuitidade do ensino pré-escolar, abrangendo mais famílias de classe média no acesso gratuito a creches, promovendo também assim a natalidade. Ao mesmo tempo, promova-se a qualidade do sistema, criando mecanismos de avaliação da qualidade do apoio educativo ministrado em creches públicas, sociais e privadas.

 

Filipe Santos, Dean da CATÓLICA-LISBON. 

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