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O escândalo e o dogma

Monday, October 15, 2018 - 11:31
Publication
Diário de Notícias

Esta é, sem dúvida, a época com mais escândalos sexuais da história da humanidade. O movimento #Me Too, de denúncia de violência e assédio nascido em Outubro de 2017, a partir do caso do produtor de cinema americano Harvey Weinstein, tem gerado uma crescente enxurrada de acusações nos lugares mais altos e diversos da sociedade e política. É já difícil enumerar todas as personagens célebres e influentes, de todos os campos de actividade, que perderam carreira e reputação devido a esta dinâmica. Se acrescentarmos as imparáveis notícias de pedofilia na Igreja Católica, que não cessam há mais de 20 anos, fica evidente a dimensão inusitada da indignação pública nestes temas. Os crimes são gravíssimos e os efeitos devastadores. Por isso, nunca como hoje nos ofendemos tanto por questões do foro íntimo.

Isso é paradoxal pois, por outro lado, nenhum tempo se afirma mais tolerante e aberto nos comportamentos eróticos. Desde a chamada "revolução sexual" dos anos 1960 instalou-se uma atitude de crescente liberdade nesse campo que, nos últimos tempos, atingiu níveis incomparáveis com qualquer época e cultura. Adultério, divórcio, aborto e homossexualidade passaram de pecados sociais a direitos humanos; erotismo e pornografia transformaram-se em intocáveis manifestações artísticas; tornou-se impossível comentar qualquer opção alheia, desde que entre adultos com consentimento. Acerca do vestuário provocador, como da infidelidade conjugal e opção sexual, nada se pode dizer, senão afirmar a sua indiscutível legitimidade. Fazer uma crítica nestes temas, por pequena que seja, é automaticamente repudiado como sexismo, discriminação e intolerância. De onde vêm então tantos escândalos?

À primeira vista não existe contradição, pois todas as denúncias recentes caem nas duas únicas situações que subvertem o dogma da liberdade absoluta: ou não há adulto, na pedofilia, ou não há consentimento, na violação. Mas se esta constatação afirma a coerência lógica das denúncias, não elimina o insólito. Como é possível que outras eras, alegadamente presas em inúmeros e asfixiantes tabus sexuais, nunca tenham atingido o grau de tumulto social desta época de tolerância e abertura? Não era suposto a liberdade de costumes gerar uma sociedade mais serena e compreensiva nestes assuntos, sem os preconceitos, conjuras e difamações de antigamente? Como se entende então que seja logo hoje que as denúncias e insultos estão omnipresentes? Até ao momento existem apenas duas respostas a esta questão, uma falsa, a outra omissa.
Uma possível explicação, aliás dominante, é que as eras anteriores não prestavam atenção, ou até toleravam, estes crimes. Nos tempos em que as pessoas se escandalizavam com adultério ou pornografia, condescendiam no assédio e pedofilia. Isso conduz à situação irónica de ter esta época a acusar as anteriores de laxismo sexual. A cultura actual adora dar lições de moral às outras, mas habitualmente acusa-as de intolerância e rigorismo. Esta é a primeira vez que os contemporâneos tomam a atitude das suas avós, para acusar essas avós de terem sido pouco severas com alguns comportamentos.

Claro que o fundamento histórico desta explicação é completamente falso. O repúdio pela pedofilia e violação faz parte dos princípios da generalidade das eras passadas. Além de repudiarem muitos dos comportamentos hoje consideradas normais, esses tempos também rejeitavam as práticas que ainda nos escandalizam. Sempre houve casos desses, mas nunca foram considerados aceitáveis ou, sequer, toleráveis. Uma coisa é dizer que as vítimas têm dificuldade em divulgar os horrores que sofreram, facto que também sempre existiu e, felizmente, o movimento #Me Too contribui poderosamente para melhorar. Outra, muito diferente, é dizer que as sociedades anteriores eram cúmplices de tais violações, o que evidentemente carece de fundamento.

Esta explicação, apesar de falaciosa, tem sido generalizadamente imposta, para evitar que ressalte a alternativa óbvia: hoje existem mais casos destes do que antes. Não é difícil concluir que, num tempo tão carregado de tensão erótica, em que vigora o mais desbragado laxismo, os comportamentos desviantes prosperem. Aliás, o papel central que a indústria cinematográfica tem desempenhado no escândalo suporta esta conclusão, pois nenhum outro sector tem feito tanta promoção da libertinagem.

Esta conclusão, porém, nunca pode ser admitida pelo nosso tempo, porque isso poria em causa o tal dogma nuclear da liberdade sexual absoluta. Ora, nenhuma época consegue questionar os valores supremos em que se baseia sem se minar si mesma. No dia em que se assumir que a licenciosidade é prejudicial ao equilíbrio social, ela aproxima-se do fim. Realmente, existem muitos outros sinais de dano estrutural causado pelo laxismo sexual, da decadência demográfica à destruição da família, gerando solidão, conflitos, dívidas, depressões. No entanto, ninguém o pode assumir, porque tal poria em xeque um dogma que faz parte da base nuclear da cultura contemporânea.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

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