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A liderança carismática de Trump é semelhante a um incêndio que necessita de combustível (o sentimento de ameaça que caracteriza os apoiantes), oxigénio (um contexto social de grandes mudanças no contexto interno e internacional) e uma fonte de ignição (a personalidade radical do líder).

Nas últimas eleições presidenciais norte-americanas, Joe Biden foi o presidente eleito com o maior número de votos de sempre, mas o seu opositor, Donald Trump, também conquistou um lugar no pódio: foi o derrotado que até hoje obteve maior apoio dos eleitores. Conseguiu quase 73 milhões de votos, mais 10 milhões do que em 2016, depois de quatro anos de presidência em que revelou atitudes discriminatórias, arrogância, desrespeito pelas instituições, agressividade com os opositores, falta de sentido de estado e recurso sistemático à mentira.

Em 2016, sem experiência política e sem o apoio das elites do partido, o desempenho como presidente ainda podia ser um enigma. A sua personalidade como líder empresarial e a falta de integridade como gestor não prognosticavam nada de bom, mas era um desconhecido no exercício de funções públicas. Em 2020, já havia as evidências de quatro anos de governação que permitiam um voto informado e mesmo assim voltou a dividir a América.

Para além da forma desastrosa como geriu a crise pandémica, a política económica de Trump teve sucessos questionáveis. É certo que a economia americana cresceu sempre acima dos 2% e o desemprego baixou para o mínimo dos últimos 50 anos, mas uma parte dos sucessos anunciados foram postos em causa por muitos analistas. A presidência de Trump deixou uma herança pesada: o corte nos impostos levou o deficit público ao valor record de 4,6% do PIB, em 2019, e a dívida pública ultrapassou os 27 triliões de dólares.

Ainda recentemente 16 laureados com o Nobel da Economia assinaram uma carta alertando para "o facto de que um segundo mandato de Trump teria um impacto negativo na posição económica dos EUA no mundo e um efeito desestabilizador na economia interna dos EUA". A carta mencionava ainda que muitos norte-americanos estão preocupados com a inflação e Donald Trump pode reativá-la com os seus "orçamentos fiscalmente irresponsáveis".

Esperava-se, pois, que após um mandato marcado por decisões polémicas, atitudes indignas do cargo e políticas que pouco melhoraram a vida dos norte-americanos, Trump obtivesse uma derrota clara. Não foi o que aconteceu. Apesar de não ter sido reeleito recebeu o apoio de mais 10 milhões de votantes. Passados quatro anos, Trump está de volta, continua a dividir a sociedade americana e está à beira da reeleição. As últimas sondagens dão-lhe 48% das intenções de voto.

Estes dados mostram, por um lado, uma profunda divisão da sociedade americana, mas também a ligação emocional de quase metade da América à figura do polémico presidente. O que explica esta relação? Que ansiedades e expectativas do povo americano se projetam na liderança radical de Donald Trump? Existe uma conexão explicável entre o seu perfil psicológico e as motivações dos seus apoiantes?

Os numerosos diagnósticos publicados, da personalidade de Trump, são quase sempre severos: descontrolo emocional, transtorno narcísico, "complexo de messias", mitomania, paranoia e psicopatia. Nenhuma destas conclusões se baseia num diagnóstico direto. As avaliações foram realizadas a partir da análise de entrevistas, intervenções públicas, mensagens e decisões políticas que foram conhecidas.

Isto não põe em causa a importância do estudo dos perfis percebidos de personalidade. A reação às figuras públicas é influenciada pela forma como os seus padrões de comportamento são percecionados. Com a queda das ideologias, o declínio dos partidos políticos, a emergência das redes sociais e do "voto impulsivo", o perfil percebido dos candidatos é cada vez mais determinante como heurística da decisão de apoio. Vários estudos mostram que os eleitores tendem a apoiar os líderes cuja personalidade "combina" com a sua, e que o perfil psicológico do líder é um bom preditor tanto da sua ação política como das motivações dos seus apoiantes.

Um estudo recente mostra que as principais mudanças na opinião pública que levaram à eleição de Trump, em 2016, não foram o "voto de bolso", mas "a necessidade de haver menos acordos de mercado livre", "os imigrantes deverem regressar aos países de origem" e "a ameaça da China ao emprego e à segurança nos EUA". Estas mudanças aproximaram o eleitorado dos pontos de vista mais conservadores e mostraram ser os melhores preditores do voto em Trump. O estudo conclui ainda que, subjacente a estas mudanças de opinião, está um sentimento de ameaça externa e interna ao estatuto social que atinge uma larga faixa da população americana, sobretudo branca, masculina, tradicionalista e com estatuto social reconhecido. A investigação tem confirmado que a ameaça percebida por um grupo social dominante tende a desencadear reações de apoio a soluções políticas conservadoras que restaurem os equilíbrios do passado e lhe restituam a dominância.

Outro estudo recente confirma que o apoio a Trump assenta num quadro psicológico de ameaça percebida que estimula a forças in-group e polariza o ódio contra o que é estranho ou parece adverso. Psicologicamente, o sentimento de ameaça de status é diferente do racismo ou do sexismo. Ao contrário destes, é autoprotetor, passivo e pouco consciente. É sobretudo o medo da mudança na sociedade e nos valores, e a nostalgia do regresso ao passado, que dá origem a atitudes racistas, sexistas, xenófobas e anti-elitistas. Na realidade elas não radicam em antagonismos estruturais, mas são uma reacção ao medo. A liderança de Trump não foi a causa. Limitou-se a despoletar uma dinâmica que estava latente na sociedade norte-americana, com a promessa do regresso à grande américa do passado.

A metáfora do incêndio é particularmente útil para se compreender a nossa tese: a liderança carismática de Trump é semelhante a um incêndio que necessita de combustível (o sentimento de ameaça que caracteriza os apoiantes), oxigénio (um contexto social de grandes mudanças no contexto interno e internacional) e uma fonte de ignição (a personalidade radical do líder). Trump utiliza o discurso funcional no momento certo, para dar voz às ansiedades e expectativas de muitos americanos. O acentuado narcisismo da sua personalidade é percebido como um sinal de autoridade e de confiança em si próprio, que é apelativo a pessoas dependentes ou inseguras que veem nele o líder que indica o caminho. A agressividade com que reage aos opositores projeta a revolta de muitos descontentes com as mudanças sociais que os ameaçam. Um grande número de ressentidos e revoltados sente-se representado nas suas teatralizações agressivas. O fenómeno Trump é um "incêndio" que, pela sua natureza, pode ocorrer nas grandes democracias ou noutro lugar qualquer.

Luís Caeiro, Professor da CATÓLICA-LISBON