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No dia 10 de setembro morreu Charles Kirk. A notícia espalhou-se depressa e, com ela, vieram as reações extremadas que já se tornaram rotina. Para uns, a morte representa o fim de uma voz controversa, símbolo de ideias que incomodavam; para outros, é um momento de luto de alguém que têm seguidores fiéis. Independentemente das opiniões, é algo que, não fosse a dimensão mediática, ficaria no espaço íntimo de cada um, mas depressa escalou para espetáculo público. Jimmy Kimmel, no seu programa noturno, fez comentários e piadas sobre Kirk: uns aplaudiram o humor, outros consideraram uma falta de respeito imperdoável. A resposta foi fulminante, suspensão imediata do programa e acusações de censura. E, como se não bastasse, Donald Trump surgiu a aplaudir a decisão, aproveitando o momento para reforçar a narrativa que alimenta as suas guerras culturais constantes. A tragédia de uma morte converteu-se em combustível para o circo mediático e em mais um episódio na longa lista de batalhas políticas que já não distinguem vida privada de palco público.
Vivemos na última era da tolerância. E digo-o com o peso da palavra “última”, porque tudo aponta para o seu desgaste acelerado. Os números confirmam: nos últimos dez anos, os crimes de ódio e de intolerância ideológica ou religiosa cresceram significativamente em várias democracias ocidentais. O espaço que deveria ser de debate converteu-se em arena, e as redes sociais, que prometiam ser praças abertas, transformaram-se em trincheiras digitais onde já não se dialoga, apenas ataca-se. O contraditório, que antes era sinal de vitalidade democrática, passou a ser visto como ameaça. A diferença, que antes enriquecia, passou a dividir.
É aqui que vale a pena parar e perguntar: o que significa hoje liberdade de expressão? Durante décadas repetiu-se uma máxima bonita, quase ingénua: a minha liberdade acaba onde começa a do outro. Uma frase de bolso, fácil de repetir, mas difícil de praticar. Hoje, essa máxima parece ter sido substituída por outra: a minha liberdade só acaba quando consigo gritar mais alto que o resto do mundo. É a era do megafone: quem berra mais, ganha. O argumento? Supérfluo. O raciocínio? Um acessório opcional. O consenso? Uma relíquia jurássica, que muitos já rotulam como “outdated”, digam os Gen Z.
O episódio Kirk/Kimmel/Trump é apenas um reflexo deste tempo. Houve quem celebrasse a morte de Kirk como a derrota de uma ideologia. Houve quem erguesse Kimmel como mártir da liberdade de expressão. Houve quem, como Trump, visse nisto a oportunidade dourada para incendiar ainda mais o campo de batalha. Três lados, três narrativas, mas a mesma obsessão: transformar a opinião numa arma de destruição rápida. E nós, espectadores, ficamos a assistir, sem perceber se ainda vivemos numa democracia ou num ringue de boxe digital onde vence quem aguenta mais murros de argumentos vazios.
Mas tolerância, essa palavra que parece esvair-se, não é canonizar Kirk nem linchar quem o admirava. Não é blindar Kimmel contra críticas, mas permitir que fale, e até que erre. Tolerância é conviver com quem nos incomoda, com quem discorda de nós, com quem nos obriga a sair da bolha confortável do aplauso mútuo. É perceber que opiniões não são decretos, que privilégios não tornam automaticamente os outros menores e que vulnerabilidades não são desculpa para silenciar o mundo.
Por isso este manifesto: não como lição, mas como apelo. Apelo à tolerância dos que não concordam com Kirk mas não celebram a sua morte. Apelo à tolerância dos que defendem Kimmel sem achar que ele é infalível. Apelo à tolerância de quem sabe que o mundo é feito de divergências e que a democracia é, acima de tudo, a arte de as gerir. A tolerância de quem aceita que há realidades diferentes, sim, algumas marcadas pelo privilégio, outras pela falta dele, mas que nenhuma anula a dignidade da outra.
No final, a questão é simples: queremos viver numa sociedade onde sobrevive quem grita mais alto, ou numa onde ainda há espaço para ouvir o outro? A primeira opção parece mais fácil, mais imediata, basta subir o volume. A segunda exige esforço, humildade, coragem. Talvez seja pedir demasiado. Mas, como diria um comediante (provavelmente um que já não o pode dizer em antena aberta): rir pode ser arriscado, mas viver sem poder rir é intolerável.
André Alves, Brand & Digital Marketing Diretor da CATÓLICA-LISBON