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“Um dos aspectos da desigualdade é a singularidade - isto é, não o ser este homem mais, neste ou naquele característico, que outros homens, mas o ser tão-somente diferente dele.”

Fernando Pessoa

 

Estamos a assistir a um ressurgimento do interesse pelos determinantes do hiato salarial entre géneros, sob novas abordagens empíricas, dados mais ricos e renovadas perspetivas teóricas. A igualdade de género é um objetivo importante de desenvolvimento sustentável (#5) mas pode estar mais longe de ser alcançado do que esperamos.

 

De acordo com os dados das Nações Unidas, as mulheres ganham globalmente menos que os homens, para ser mais preciso, as mulheres ganham em média menos 24% do que os homens.

No sentido de percebermos quão longe estamos de alcançar este objetivo, temos de olhar para a tendência nos últimos anos. Em 1991 os salários das mulheres portuguesas eram inferiores aos dos homens em cerca de um terço. Em Portugal, de 1991 para 2019 o hiato salarial entre homens e mulheres reduziu-se em 14 pontos percentuais (Linha “raw” no gráfico). À primeira vista estas parecem excelentes notícias.

 

Figura: Discriminação salarial por género em Portugal

 

A análise econômica tradicionalmente tem-se focado sobretudo (1) na importância da participação feminina no mercado de trabalho e (2) nas diferenças de atributos observáveis entre homens e mulheres. Qualquer um desses dois mecanismos pode ser entendido intuitivamente.

Se a taxa de participação feminina é baixa, então há margem para que os atributos das trabalhadoras não sejam representativos das características da população feminina em geral. Esta selecção pode funcionar no sentido de elevar ou baixar os salários das mulheres, dependendo se as normas sociais, preferências, as condições económicas e políticas públicas atraem desproporcionalmente para o mercado de trabalho mais ou menos mulheres qualificadas (ao longo das dimensões que podem ser observáveis ou não observáveis). Em qualquer caso, com o aumento da taxa de participação das mulheres é esperado que se assista a uma diminuição da importância da seleção nos hiatos salariais.

Desde 1991 um número crescente de mulheres, cada vez mais qualificadas, integrou o mercado de trabalho português. Em resultado desse fluxo, em 2013, a proporção de mulheres no “stock” de empregados em 2019 tinha aumentado de 35 para 46 por cento.

 

 

A convergência das características como a educação e a experiência tiveram um papel fundamental na redução do hiato salarial entre homens e mulheres. Em 2019 as trabalhadoras possuem características observáveis que ajudam a estimular a sua produtividade muito semelhante às dos seus colegas homens. As trabalhadoras têm hoje níveis de educação mais elevados, participam mais ativamente no mercado de trabalho e acumulam mais experiência nas empresas.  Este progresso fica a dever-se quase inteiramente à melhoria das suas qualificações após duas décadas de investimentos em capital humano.

Mas afinal de contas o que significa igualdade salarial de género? Nós esperamos que indivíduos ganhem o mesmo, mas comparar a média do salário das mulheres com o dos homens não é suficiente e até pode ser enganador. Igualdade significa que indivíduos, que sendo iguais em tudo o resto, ganham o mesmo. Assim, precisamos comparar mulheres e homens com características semelhantes. A comparação relevante é entre um homem e uma mulher semelhantes em termos de idade, experiência, nível de educação e que têm a mesma ocupação. De facto, quando o cálculo do hiato salarial é ajustado, através de uma regressão convencional, para as características observadas dos homens e das mulheres, a indicação de aproximação dos salários deixa de se verificar. Dito de outra forma, os progressos salariais do contingente feminino observados ao longo dos 30 anos são devidos quase exclusivamente à melhoria das suas qualificações (experiência profissional, antiguidade, etc.) e não à redução da componente não explicada do diferencial salarial, que é a componente convencionalmente associada à noção de discriminação sexual. Neste sentido, não há qualquer indicação de que a discriminação sexual na formação dos salários se tenha atenuado, pelo contrário, agravou-se ligeiramente.

Isto significa que o hiato salarial ajustado se manteve mais ou menos estável em torno dos 26 por cento ao longo dos últimos 30 anos. Uma trabalhadora que trabalhe numa empresa do mesmo tamanho, com igual idade, educação e experiência ganha menos 26 por cento do que o seu colega homem com essas mesmas características. Com os dados detalhados de que dispomos hoje em dia e com as técnicas econométricas sofisticadas disponíveis podemos ir ainda mais longe. Se considerarmos uma mulher com a mesma idade, educação, experiência que trabalha na mesma empresa e na mesma ocupação e posição hierárquica ela tem ganho em média sempre menos 12% ao longo de todo o período. Nos últimos 30 anos nada mudou significativamente neste aspeto.

Há uns anos num estudo realizado por mim em colaboração com os Professores Ana Rute Cardoso, Pedro Portugal e Paulo Guimarães (Cardoso et al, 2016), investigámos as origens da diferença salarial por género e concluímos que a distribuição de trabalhadores pelas empresas e categorias profissionais explicam cerca de dois quintos da diferença salarial por género. Isto significa que as mulheres estão empregadas desproporcionalmente em empresas e categorias profissionais com políticas salariais menos generosas.

Algumas das explicações plausíveis destacadas por Blau e Khan (2016) incluem diferenças de atributos psicológicos (por exemplo, o poder de negociação), que penalizam as mulheres no acesso ao topo da carreira profissional, diferenciais compensatórios para as características dos lugares de topo (por exemplo, jornadas de trabalho mais longas e com horários mais exigentes) e discriminação pura. 

 

Pedro Santos Raposo, Professor na CATÓLICA-LISBON