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Atualmente, com um parlamento tripartido, assistimos a um concurso para ver quem se lembra de promessas mais coloridas e atraentes, sem que ninguém se ocupe daquilo que realmente interessa: tomar medidas difíceis e exigentes para corrigir os desequilíbrio, desbloquear a sociedade e lançar a dinâmica de desenvolvimento que nos escapa há 30 anos.

A democracia ocidental está em perigo. Cem anos depois do grande ataque dos anos 20, então bem sucedido, voltam a surgir com força os mesmos populismos que na altura criaram as maiores catástrofes da humanidade. Hoje, mais ainda que em novecentos, tais movimentos radicais nada apresentam de novo ou eficaz. Aliás, raramente se dão ao trabalho de sequer delinear propostas, limitando-se a bramar contra o poder, acusar de corrupção, insultar tudo e todos. Por outro lado, se olharmos para os líderes e candidatos envolvidos, fica claro que, se um dia chegassem ao poder, seriam muito mais incompetentes e viciosos que os que hoje criticam. Exatamente como há 100 anos.

Estes são, sem dúvida, os inimigos da democracia. Mas escroques e oportunistas sempre existiram e sempre existirão. Por isso, o perigo real vem, não tanto deles, mas daquilo que lhes dá força. No fundo, os movimentos extremistas não passam de um epifenómeno, de um sintoma de uma doença mais profunda. O principal perigo destes inimigos da civilização está na verdade que lhe assiste.

A democracia parte da hipótese que todos os partidos concorrentes têm como finalidade o bem do povo e o interesse nacional, divergindo entre si apenas por doutrinas políticas. Este axioma é muitas vezes verdadeiro, sobretudo em momentos de dinamismo e vitalidade social. Noutras épocas, porém, a realidade fica dominada pelo postulado maquiavélico, que atribui aos candidatos uma pura ganância do poder, dizendo aquilo que for necessário para o obter e conservar.

Assistimos a uma época de grandes transformações económicas, tecnológicas, geoestratégicas. Os cidadãos, apesar de viverem muito melhor que seus pais e avós, exigem sempre mais e têm medo do futuro. Este é o ambiente em que populam os parasitas, que se alimentam de cobiça, raiva e ansiedade. Pior, o sistema democrático cristalizou-se à volta de sectores, profissões e outros interesses organizados, que capturam o poder a seu favor. O bem comum desaparece atrás de reivindicações particulares. Neste clima, os líderes serenos, moderados e razoáveis deixam de o ser, utilizando expedientes que dão razão às acusações dos radicais. Vejamos o caso português.

O Partido Socialista, apesar de perder as eleições de 2015, conseguiu chegar ao governo numa aliança com a extrema-esquerda; aquela que durante 40 anos o PS tinha repudiado como antidemocrática, que realmente é. Na época, a plataforma política da Esquerda baseava-se na ideia inacreditável que os adversários democráticos, PSD e CDS, tinham, por pura maldade, prazer em castigar o povo, desnecessariamente subindo impostos, reduzindo salários e pensões. Omitiam o facto óbvio que essas medidas impopulares constituíam imposições externas, motivadas pela quase-falência nacional gerada com a gestão socialista de 2005 a 2011.

Escorado nesta hipocrisia, e uma vez no poder durante oito anos, o PS sacrificou sistematicamente o desígnio nacional a clientelas políticas. A única linha estratégica que apregoava, as famosas “contas certas”, media a qualidade da governação pela redução do défice orçamental. Para isso subiu ainda mais os impostos, descapitalizou o Estado e degradou os serviços públicos, desviando recursos para subir salários, pensões e outras benesses distribuídas às corporações instaladas. O resultado foram anos de apatia económica, trapalhice administrativa e degradação da qualidade funcional. A única vitória foi um efémero equilíbrio fiscal.

Efémero porque, logo que se viu inesperadamente apeado do poder, o PS inverteu subitamente a plataforma essencial. Chegou ao desplante de forçar mais de 100 alterações ao Orçamento de Estado para 2024, que ele próprio tinha apresentado uns dias antes, quando ainda se julgava perpetuado no governo. Durante a campanha eleitoral subsequente e desde que é oposição, o equilíbrio orçamental esfumou-se das declarações dos antes tão zelosos socialistas, prometendo e até impondo descidas de impostos, e novos aumentos de salários, pensões e outros gastos. E até acha urgente fazer todas as despesas nos serviços públicos que nunca fez nos oito anos anteriores.

A oposição anterior, agora no poder, não é muito melhor. Durante todo o mandato prévio nunca realmente desafiou as opções do PS, porque sabia que só chegaria ao poder seguindo a mesma linha. Atualmente, com um parlamento tripartido, assistimos a um concurso para ver quem se lembra de promessas mais coloridas e atraentes, sem que ninguém se ocupe daquilo que realmente interessa: tomar medidas difíceis e exigentes para corrigir os desequilíbrio, desbloquear a sociedade e lançar a dinâmica de desenvolvimento que nos escapa há 30 anos.

Este cenário português reproduz-se, com variantes locais, um pouco por toda a Europa. Por isso, a democracia ocidental está em perigo. Os principais inimigos são os populistas de extrema-direita e extrema-esquerda que, sem soluções válidas, só conseguem influência pela denúncia da degradação das elites. Degradação que, afinal, é a verdadeira doença da democracia.

João César das Neves, Professor da CATÓLICA-LISBON