Um bluff só vence se o adversário ceder e desistir. A sua substância é pura intimidação. A única forma de enfrentar um bluff é manter-se em jogo até à revelação final das cartas. Hoje a União Europeia enfrenta dois monumentais bluffs políticos, na Grã-Bretanha e Itália. A lógica exige que Bruxelas se limite a seguir serenamente as regras, esperando que se esfumem estes desafios vácuos.
O caso italiano é o mais patente e mais fácil. O Governo de Roma, que ameaça violar as regras orçamentais europeias, não tem sequer um par na mão. A dissipação das últimas décadas, que elevou a dívida pública a 130% do produto, a 6ª mais elevada do mundo (pior até que a portuguesa, agora no 10º lugar com 121%), colocou o país à mercê dos credores nacionais e internacionais. A confiança deles é a única forma de manter o Estado a funcionar. Para se financiar, com qualquer défice, precisa sempre da confiança dos mercados, a qual depende crucialmente da chancela europeia. Com o Orçamento chumbado no Ecofin, a crise será grave e súbita, mas local, não geral. Por isso, a bravata dos extremistas no poder não passa de encenação para a plateia, sem real credibilidade.
Aliás, o bluff nem sequer chega a sê-lo, porque a União, mesmo que quisesse, nunca poderia ceder às exigências italianas. Beneficiando o infrator, surgiriam exigências semelhantes de outros estados-membros, fazendo passar por parvos aqueles que, como Portugal, tomaram as regras a sério. A transigência comunitária seria o fim da União como a conhecemos, e é portanto impensável. Assim, a manobra do governo radical transalpino só pode estar fadada ao falhanço. Se existir algum vencedor, porque nestes conflitos fraternais todos perdem, serão as regras europeias, que acabarão acatados pelos rebeldes.
A questão do Brexit é muito mais séria, antiga, profunda e menos óbvia, mas também não passa de bluff. A enxurrada de análises, opiniões e extrapolações sobre o tema repetem que a União Europeia vive uma das suas maiores crises. A circunstância é indiscutivelmente delicada mas o mais provável desfecho será o reforço da solidez comunitária, servindo de vacina a futuras deserções. Essas investigações estudam muitos aspectos, mas raramente consideram a sua plausibilidade: à medida que o tempo passa, fica mais claro que o Brexit é realmente impossível.
A Grã-Bretanha vive na União Europeia há 45 anos. Toda a sua vida política, económica, social, diplomática, doméstica foi irredutivelmente modelada pela Comunidade, tornando-se inseparavelmente ligada aos parceiros do continente em dimensões insuspeitadas. Legislação, instituições, relações, acordos, redes e até hábitos e atitudes estão conformados pelo processo de integração, que é real, penetrante e intenso há duas gerações. Prova deste facto é precisamente esta tentativa de considerar uma separação, que a cada passo manifesta a vastidão, veemência e profundidade da ligação. Hoje, muito mais do que a 23 de Junho de 2016, é evidente que o Brexit é uma impossibilidade, não lógica, mas prática.
Isso era claro desde o princípio. Então era já patente que os defensores da separação mentiam abertamente nos seus argumentos: o que prometeram era irrealista, o que garantiram era fraude, o que se queixaram era fictício. Então era já manifesto que grande parte dos que votaram a saída fizeram-no por irritação geral contra políticos e Governo, sem verdadeira compreensão do que decidiam. Então era já óbvio que, se o processo avançasse realmente, a perda para todos os envolvidos, sobretudo britânicos, seria enorme, com muito poucos benefícios. Isto não quer dizer que os adversários da União não tenham razões de queixa e que o descontentamento dos eleitores não seja real. O problema é, não os agravos, mas a simples realidade britânica, muito mais comunitária do que quer admitir. Sair hoje da União é quase tão difícil como deslocar as ilhas britânicas para outra zona do planeta.
Theresa May fez um esforço real e sincero para concretizar um Brexit. Quando isso se revelou impossível, avançou com um esboço rudimentar, que fingisse iniciar a tal separação. Como seria de esperar, o resultado, anunciado recentemente, deixou o Governo em estilhas e toda a gente descontente, de ambos os lados do debate. Ninguém quer este Brexit, o único concebível. Os extremistas mantêm o bluff fingindo que a dificuldade do processo advém da intransigência comunitária. Precisamente porque são extremistas, nunca consideram a realidade e lógica da situação. E este é o busílis da questão. O último prego no caixão do Brexit é o facto que, nestes mais de dois anos, toda a gente discute o assunto, mas ninguém avança um programa claro e razoável para a separação. Eis a prova indiscutível da impossibilidade.
A Europa não vive uma das suas maiores crises. Pelo contrário atravessa uma situação em que, se mantiver a serenidade sem ceder nos seus princípios, se afirmará como um projecto indispensável do século XXI: um royal flush de copas, contra o qual não é possível fazer bluffs.
João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON