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A grande impostura

Saturday, October 27, 2018 - 18:23
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Diário de Notícias

Todos os anos, nesta altura, os pais gastam fortunas em manuais escolares. Os livros estão cada vez mais caros e a despesa faz diferença, sobretudo aos mais pobres. O problema atingiu tal dimensão que várias escolas montaram esquemas de reciclagem em que os alunos entregam os volumes do ano anterior em troca dos do novo ano, usados pelos colegas.

O Orçamento do Estado diz que tudo isto acabou: "Em 2019, a medida de gratuitidade dos manuais escolares será alargada a toda a escolaridade obrigatória para todos os alunos da rede pública, e com enfoque particular na devolução para reutilização dos manuais. Com a gratuitidade dos manuais escolares iniciada em 2016 e expandida gradualmente concretiza-se uma obrigação constitucional de garantir o acesso de todos os alunos ao ensino público e gratuito" (relatório do Orçamento do Estado 2019, p. 22). Andávamos a violar a Constituição há décadas mas, graças à política deste governo, foi colmatada a falha.

Como se conseguiu este extraordinário benefício? Terá o senhor ministro da Educação inventado um método de produzir livros sem custo? Ou encontrou o senhor ministro das Finanças uma fonte de dinheiro grátis para causas meritórias? Talvez sejam os militantes do Bloco de Esquerda a pagar generosamente do seu bolso os milhões necessários para a medida de que tanto se orgulham nos cartazes.

Bem, não foi nada disto. Os manuais continuam caros, o dinheiro não nasce nas árvores e os políticos nunca pagam aquilo que nos dão. De facto, a benesse, que na sua generosa munificência o governo decidiu conceder neste ano, não é despesa dele, mas nossa. É sempre com os nossos impostos que os ministros fingem dar-nos coisas. Por isso a tributação nunca deixa de subir. As receitas fiscais cresceram à média de 1121 milhões de euros ao ano de 2011 a 2015, o período da troika e do "enorme aumento de impostos"; desde então, com este governo, não desceram, mas crescem quase ao dobro, 1739 milhões anuais de 2015 a 2019. Mas os ministros estão tão orgulhosos daquilo que nos "dão"!

Se fosse só a aldrabice de oferecer aquilo que é nosso, nem seria mau. Mas há outros problemas. Se os manuais vão ser grátis, deixa de ser preciso poupar os livros. É verdade que o relatório fala no "enfoque particular na devolução para reutilização dos manuais", mas não diz como se realizará esse enfoque. Se os livros são grátis, quem precisa de cuidar deles? Como acontece com tantos outros "enfoques" de boa gestão, o dinheiro público fará deles letra-morta.

Por outro lado, vai surgir mais uma magna negociação anual, desta vez entre editoras e burocratas, porque estas verbas são muito apetecidas. Como vemos nos medicamentos, na banca, nas parcerias público-privadas e em tantas áreas em que o Estado se mete com privados, campeará a burocracia, manipulação, ineficácia e compadrio. Estando em causa milhões, facilmente as coisas descarrilam. Aquilo que os nossos filhos aprendem passará a depender do que se decidir nessa negociação, aproximando-nos do "livro único".

O pior é a injustiça. Em Portugal, devido à fuga fiscal e à consequente perversidade do sistema, os impostos são muito iníquos. Assim, quando os ministros gastam, estão a utilizar o dinheiro não dos ricos mas dos trabalhadores por conta de outrem, de consumidores e de outros que não podem escapar. Neste caso, a injustiça está também na despesa, e até é declarada descaradamente no próprio anúncio: os manuais são gratuitos apenas "para todos os alunos da rede pública". Os outros, cidadãos de segunda, continuam a ter de pagar. Esses não interessam ao Estado, e a sua educação é irrelevante para o país. Tal significa que os ricos que tenham a sorte de viver em zonas onde a escola pública é de qualidade (aí normalmente é) recebem borlas dos impostos, enquanto aqueles que pretendam ensino livre, ou tenham de se esforçar para dar ensino de qualidade aos filhos que o Estado não lhes fornece, pagam duplamente, os livros dos seus e dos outros.

A medida que seria justa, democrática e eficaz é óbvia: apoiar a compra de livros escolares à escolha das famílias necessitadas, onde quer que estudem. Mas assim não se reforçaria o gigantesco monopólio da escola pública, uma das mais dominantes máquinas do país. Através dela, além do Estado influenciar o pensamento das novas gerações, alimenta-se com fundos nacionais o interesse da todo-poderosa corporação dos professores, que são os autores dos tais manuais que o Estado paga.

Este pequeno exemplo, mesmo se influente, é ínfimo numa miríade de benesses que este Orçamento multiplica em ano eleitoral: dos passes sociais às propinas universitárias, dos emigrantes à electricidade, das pensões às obras públicas. Trata-se de um verdadeiro corrupio de pequenas medidas, que tocam todos os campos, para agradar ao maior número de eleitores. Todas têm em comum o mesmo embuste, aliás comum a todos os governos há décadas. Enquanto os portugueses acreditarem que o Estado lhes dá o dinheiro que realmente lhes tira, continuarão a cair na grande impostura.

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