Press News & Events

Interior e Liberdade

Saturday, August 4, 2018 - 11:48
Publication
Diário de Notícias

Os intelectuais portugueses adoram abstracções. A realidade é sempre suja, controversa, incerta, aborrecida; muito melhor é viver em teorias, conjecturas, promessas, ideais. Os chavões vão mudando; o do momento é «interior». A 18 de Maio, o proverbial conjunto de personalidades, aqui autointitulado Movimento pelo Interior (MPI), apresentou o canónico manifesto e as inevitáveis medidas.

O professor Luís Cabral, da Universidade de Nova Iorque, já explicou, a 21 de Julho no Expresso, que "o diagnóstico do governo e do MPI está equivocado; e as soluções propostas são, no melhor dos casos, ineficazes". Infelizmente não teremos esse "melhor dos casos" e o movimento saldar-se-á por sério prejuízo para o desenvolvimento nacional e do interior. A origem do erro é a tendência intelectual de viver no subjectivo, sem se dar ao trabalho de verificar as hipóteses.

O interior é uma abstracção. A única entidade que realmente se desenvolve são pessoas; não se desenvolvem terrenos, territórios, zonas. Se os cidadãos abandonam uma região em busca de vida melhor noutras, devem ser respeitados e apoiados, não as terras. A desigualdade constitui grave obstáculo para o desenvolvimento equilibrado, mas a desigualdade entre pessoas, não a desigualdade entre sítios. Pelo contrário, igualizar o território destrói identidades. Há décadas que o Estado se esforça por desenvolver o interior e combater a desertificação; o próprio MPI manifesta o fiasco. O que deveria aconselhar mudar de estratégia, não insistir.

Só há um método realmente eficaz de defesa do interior: o sistema hukou chinês de registo doméstico, impondo a cada um viver na terra onde nasceu. O resultado é a infame privação de direitos de cidadania e acesso a serviços básicos de milhões de migrantes internos clandestinos. Pelo contrário, os quatro pilares da União Europeia, estabelecidos no Tratado de Roma de 1957, são a liberdade de movimento de bens (título I), pessoas, serviços e capital (título III).

Estas afirmações podem parecer exageradas. Afinal, o MPI propõe apenas incentivos, benefícios fiscais, apoios estatais, os tradicionais golpes (os tais que falham há décadas) de burocratas e empresas para aumentar fatias no banquete dos fundos públicos. Talvez alguns reduzam a desigualdade entre pessoas. Só que, como o governo tem pouco dinheiro para satisfazer estas exigências e os serviços centrais nem querem ouvir falar de deslocalização, a única forma de fingir apoio, pelo menos até mudar a abstracção da moda, é a medida com menos custos financeiros, mais danos aos direitos de cidadania, porque mais parecida com o hukou: o corte nas vagas do ensino superior em Lisboa e no Porto, pelo despacho n.º 5036-A/2018 de 15 de Maio.

A prioridade do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior devia ser o interesse dos estudantes universitários e, depois, a qualidade da ciência e tecnologia. Claro que ele não pode atender a isso, pois há décadas os seus serviços estão controlados por professores e instituições, as corporações dominantes no sector. Se isso é mau, esta intervenção, atropelando estudantes, ciência, tecnologia, e até professores e instituições, defende a abstracção do interior. Ao fazê-lo, o ministro exorbita das suas funções, prejudica a sua missão e sofre críticas de todos os quadrantes. Mas, coitado, é obrigado a fazê-lo pelo único interesse superior ao das corporações: a necessidade de o governo mostrar serviço no tema mediático da semana.

O corte é um erro logo em termos intelectuais, por ser genérico e abstracto, sem atender a cursos, escolas, interesses, circunstâncias. É pura arbitrariedade cega e arrogante de quem não liga à realidade para atender a chavões. Mas também é errado em termos académicos, pedagógicos, económicos e sociais. A concentração de estudantes em centros universitários é uma boa ideia, como mostram séculos de experiência. Portugal tem excesso de escolas e de pulverização geográfica para um país do nosso tamanho. Reforçar esse desequilíbrio é prejudicar o desenvolvimento universitário, não promovê-lo. O ministro sabe isto melhor do que ninguém, mas, coitado, não teve escolha.

Pior é a dimensão cívica. Violar os desejos dos estudantes e prejudicar as melhores escolas do país, passando os seus candidatos mais fracos para escolas do interior, não contribui para o desenvolvimento das regiões, com custos para todos. Obrigar estudantes a ir para onde não querem e pais a pagar a estada longe é infame desperdício. Claro que há benefícios, em particular nas escolas não estatais das duas cidades, como a Universidade Católica, onde trabalho, mas isso não impede que a política seja um erro a denunciar.

O interior tem futuro pela sua própria dinâmica, sem precisar das benesses discriminatórias e degradantes do Movimento pelo Interior. Para isso, é preciso que os seus autarcas, em vez de lutar por dinheiros e favores, que há décadas promovem a inferioridade dependente do interior, se deixem de abstracções e se dediquem ao bom governo das suas gentes e terras.

 

João César das Neves, Professor Catedrático da CATÓLICA-LISBON.

Related Press News

03/01/2022 - 09:50
Observador
A história dos efeitos duma crise no emprego e no rendimento escreve-se olhando tanto para os empregos destruídos durante a crise como para os empregos criados durante a recuperação. Na passagem de ano comemos 12 passas e pedimos 12 desejos. Muitos...
28/12/2021 - 09:49
Jornal de Negócios
A conjuntura pandémica atual, que exibe um novo pico de infeções no final do mês de dezembro, mais as pressões inflacionistas que se sentem na Economia global são fontes importantes de preocupação e provavelmente serão tema de discussão na campanha para...